Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Muitas vezes, trata-se de aprender a ver. Ou talvez se trate de aprender a sentir, que é mais amplo e, por isso, é uma aprendizagem anterior, mais próxima das primeiras lições. Ou talvez se trate de aprender a estar, que é um entendimento ainda mais primordial e, por isso, mais difícil de aceder, mais enterrado no esquecimento que fomos desenvolvendo. Para ver, precisamos de ser capazes de sentir; mas para sentir, precisamos de ser capazes de estar.
Seguir estes caminhos de Pier Paolo Pasolini (PPP) requer esse trabalho de consciência porque se trata, em primeiro lugar, de uma experiência sensorial. A estrada aqui apresentada está rodeada de paisagens. São paisagens que existem nas palavras. Lê-las é vê-las, senti-las, estar nelas.
Este livro é como um baú cheio de espaço e de tempo. Recorda-me aqueles projetos, como é o caso da Future Library, na Noruega, em que se preservam textos para serem lidos muitos anos depois, acreditando-se que contêm um pouco do seu presente. Provavelmente, essa não é uma característica evidente em toda a escrita mas, neste livro, é exatamente isso que acontece.
O espaço é Itália, mais propriamente várias extensões da sua costa, o tempo é de junho a agosto de 1959. Mas, apesar das múltiplas referências históricas, essa é uma cronologia indicativa. O verdadeiro tempo destas páginas é o verão mítico, o verão quase perfeito. Para o leitor contemporâneo, há uma nostalgia que suaviza ainda mais descrições que, em si, são já de uma imensa suavidade. Apesar do caráter concreto e específico do que é dito por PPP, o olhar que lançamos para este passado esbate contornos, como fotografias desfocadas ou desbotadas pelo sol.
Não quero com isso dizer que não haja uma dimensão histórica. Existe e prenderá a atenção de quem tiver esse tipo de interesse. Mas para o leitor que siga o texto na sua dimensão mais espitual, os breves encontros com Moravia e Fellini, por exemplo, pertencem à caracterização de um mundo. Logo a seguir, a transcrição de uma breve conversa sobre o Prémio Strega é um pedaço aleatório de quotidiano, ao qual se dá pouco valor, porque tudo é secundário perante o que realmente importa: o mar, o sol, os corpos. Ainda no que diz respeito ao encontro com Fellini, é significativo que PPP se tenha esquivado a ajudar na escrita de alguns diálogos de La Dolce Vita, em rodagem naquele momento, preferindo um passeio pelas praias de Tirreno.
Esta é a festa da juventude e da liberdade. Várias vezes, PPP detém o olhar em jovens corpos, desliza na sua pele. O nosso olhar segue o dele, não podemos desviá-lo. Essa sensualidade é inseparável deste verão, desta longa estrada que seguimos até ao fim. Então, depois de múltiplos ocasos, é o próprio fim do verão que nos espera. No entanto, não acaba verdadeiramente. Estas páginas começaram por ser publicadas numa revista, tinha de ser assim, o seu efémero pedia-o, mas agora estão aqui, continuam aqui, talvez para sempre, paradoxalmente eternas.
A Longa Estrada de Areia, Pier Paolo Pasolini, tradução de João Coles, posfácio de Paulo Mauri, Edições do Saguão, 2023
(Publicado no Jornal de Letras, 29 de novembro de 2023, na coluna "Fiquei a pensar", onde JLP escreve sobre as suas leituras.)
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.