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UM NOTÁVEL TEMPO NARRATIVO

Miguel Real, in Jornal de Letras (julho 2019)

 

No futuro, Autobiografia talvez se venha a constituir como o melhor romance de José Luís Peixoto (JLP) publicado até 2019, não por conter José Saramago e Pilar como personagens, não por inovar estilisticamente face à obra anterior, mas pelo notável trabalho sobre a categoria de tempo narrativo, que, deveras, ainda que firmado sobre o tempo real, especificado no texto com algum pormenor, assume a função maior de organização estrutural do romance.

 

De facto, o registo da escrita de JLP permanece igual: um cruzamento original entre um explícito realismo (nome de ruas, bairros, descrição física e psíquica de personagens, origem geográfica ou étnica destas, profissões, condições familiares…) e um lirismo descritor de situações sociais labirínticas que, contra a vontade das personagens, as arrastam para o fracasso, um fracasso descrito de um modo fatal, inevitável, ainda que com palavras suaves, como se fosse próprio do homem não realizar-se. O lirismo, em JLP, reside na impossibilidade de se realizar o que deveria ser realizado, lançando as personagens num jogo mental não trágico de compensação e substituição.

 

Bucelas, Bairro da Encarnação e Bairro das Colónias em Lisboa, Pangim-Goa, Santo Antão-Cabo Verde, Quinta do Mocho-Sacavém e Lanzarote constituem-se como as bases do realismo de Autobiografia. Saramago/Pilar, José/Lídia, Bartolomeu de Gusmão (lembram-se?), Fritz e os pais, Mãe de José são, com excepção do primeiro par, seres fracassados, que parecem arrastar-se num tempo de decadência das suas vidas (Bartolomeu, Fritz, Mãe de José), que igualmente aprisiona as personagens jovens (José, Lídia, Domingues), incapazes de criar um tempo realizador novo.

 

O tempo narrativo nasce da inter-relação entre os momentos da existência das personagens, formando um puzzle, no qual, porém, um novo momento temporal da narração não só condensa todos os momentos e factos narrados anteriormente como revela um sentido antes oculto à história narrada, como se, em cada capítulo, uma outra estória estivesse a acontecer e o romance avançasse por camadas sucessivas. Não se trata de cronologia, aqui totalmente subvertida, não se trata de continuidade ou de sucessividade narrativa (não existe um fio de ligação senão que são sempre as mesmas personagens, estas porém evidenciadas coleidoscopicamente, como se em cada capítulo brilhasse apenas uma vertente), mas de acumulação de acontecimentos, como se fossem estratos geológicos uns sobre os outros. A estrutura temporal de Autobiografia é, assim, um tempo de acumulação de acontecimentos cuja presumível unidade ou fil rouge só pode ser conferido pelo leitor. É a grande participação do leitor, prestar unidade ao que é mostrado multiplamente, detectar o todo onde só se vê partes. Autobiografia exige, assim, um leitor nada preguiçoso, aliás, convidado pelo narrador a participar, já que em certos momentos, fundem-se narração da realidade exterior e a própria realidade exterior, narrador e leitor.

 

Não é de admirar, portanto, que consoante o leitor privilegie uma personagem (por exemplo, Bartolomeu, retornado de Angola, Fritz de família com origem em Goa, depois Lourenço Marques, depois Viena de Áustria; ou Lídia, de Santo Antão, depois Quinta do Mocho…), assim tenha uma visão geral diferente do romance: o de um Império a desfazer-se (Fritz, que “cega” no retorno a Goa), a do “retornado” africano como um faz-tudo exilado em Portugal, capaz de reconstruir a vida, de enriquecer de novo a partir de diamantes trazidos enfiados no ânus; a de Lídia cabo-verdiana, serviçal dos portugueses, arrastada na miséria, sem nunca perder a doçura e a alegria; a de Domingos, cabo-verdiano que sobrevive pela violência…).

 

No centro desta teia, emerge Saramago e, acessoriamente, Pilar, representada de um modo passivo e não como o intenso amor maduro do escritor (e é pena!). No centro do romance está Saramago e no centro desta personagem está um segredo, que o une a José, o jovem escritor de um primeiro romance, que anseia por escrever o segundo. O editor  – Raimundo Benvindo Silva, que JLP eleva de revisor e autor a editor –, diferentemente, propõe-lhe escrever uma biografia de Saramago, que José aceita hesitantemente.

 

Não devemos revelar o “segredo”, nem devemos revelar se, afinal, José escreve ou não a biografia de Saramago, já que seria anular o efeito suspensivo que o autor imprimiu a Autobiografia – duas revelações só feitas perto do final. E, no caso do título, nem nós temos a certeza qual o verdadeiro autor de “autobiografia”, se Saramago, que assim teria inventado a personagem José para se auto-retratar, e todo o romance seria seu enquanto personagem, se de José, que assim escreveria um romance a narrar a terrível passagem entre o primeiro e o segundo romances. Quem é o autor implícito de Autobiografia, já que o explícito é JLP? A resposta a esta questão, que só pode ser pensada a partir da leitura dos momentos finais, decide a totalidade da interpretação e do sentido do romance. Comprovando a noção de tempo acumulativo (um momento sobre outro, mas não necessariamente um momento causado e derivado do anterior), da resposta que o leitor deduzir, decorrerá o sentido total de Autobiografia.

Não hesitamos em qualificar Autobiografia como o melhor romance português publicado até ao verão de 2019.

 

(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto




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