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A segunda edição de "Gaveta de Papéis" chega às livrarias a 19 de Setembro de 2011. Esta edição da Quetzal sucede àquela que foi feita em 2008, após a atribuição do Prémio de Poesia Daniel Faria a este livro.
Os outros livros de poesia de José Luís Peixoto ("A Criança em Ruínas" e "A Casa, a Escuridão") serão reeditados muito em breve.
Tenho mil irmãs para amar sem palavras.
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas
pelo mármore de estátuas, reflectidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem,
é porque eu próprio não me compreendo.
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola e tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis
Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.
Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.
Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.
Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
o direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.
E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?
Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.
poema de José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis
Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho,
como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.
poema de José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis
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