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Em outubro de 2017, José Luís Peixoto visitou a península da Coreia pela quinta vez. Escreveu as dez crónicas breves, que se apresentam em seguida e que foram transmitidas na RDP/Antena1. Na mesma rádio, apresentou uma reportagem da sua autoria, que pode ser ouvida AQUI.
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No aeroporto de Pequim, faço o check in para Pyongyang pela quinta vez na minha vida. Os norte-coreanos que podem sair do país despacham malas que fazem apitar as máquinas e, por isso, têm de abri-las para inspeção.
No avião, vou sentado ao lado de um homem muito direito. No jornal Pyongyang Times, em inglês, leio as notícias da primeira página: a produção aumentou em diversos sectores da economia nacional. Há também um artigo com o título "Atos anti-República Popular Democrática da Coreia vão trazer mais vergonha e ruína para os Estados Unidos". Na notícia principal, no entanto, Kim Jong-un inspeciona uma quinta agrícola militar. Sorri na fotografia, com trigo até à cintura.
Quando as hospedeiras, com voz colocada e muito aguda, anunciam a aterragem, vêm-se campos lavrados e algumas casas rurais da mesma cor desse terreno.
Pela quinta vez na minha vida, cumpro as formalidades da alfândega da Coreia do Norte. Um militar pede telefones e passaportes. Na revista das malas, outro militar encontra dois livros na minha bagagem. Vão ser analisados. Sei o que não posso levar — livros sobre os Estados Unidos, a Coreia do Sul, bíblias, etc. — e, por isso, espero despreocupadamente num guichet que me devolvam um volume de poesia do Perú e um ensaio sobre literatura.
Encontro as guias que me acompanharão durante todos os momentos da minha estadia. São duas mulheres, uma da minha idade (43 anos) e outra muito mais nova (22). Conheço a primeira, viajei com ela pelo país em 2014.
Na berma da estrada entre o aeroporto e Pyongyang, há centenas de pessoas de todas as idades a pé ou de bicicleta. Chego à cidade, multidões enchem os passeios. Estes são os norte-coreanos que se imaginam no ocidente, que estão por baixo de muitas conversas, mas de que poucos falam em concreto. Durante a próxima semana, pela quinta vez na minha vida, voltarei a andar entre eles.
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Às cinco da manhã em ponto, começa a ouvir-se uma música suave, algo fantasmagórica, em todos os altifalantes de Pyongyang. Da janela do meu quarto, vejo os vultos que, a essa hora, atravessam a escuridão total. O dia nascerá às seis e meia. À primeira luz, os passeios estão já cheios de gente: homens e mulheres a irem para os seus trabalhos, estudantes a caminharem enquanto leem cadernos que seguram diante do rosto, crianças pequenas (6 ou 7 anos) que vão sozinhas de mochila às costas, velhos que empurram carros com sacos de serapilheira, militares rasos a pé, oficiais de bicicleta.
A partir das oito da manhã, nas praças principais de Pyongyang, nos lugares onde passa mais gente, há formações de dezenas de mulheres que tocam tambor e fazem coreografias sincronizadas com bandeiras de vermelho muito vivo. Estão ali para dar ânimo aos trabalhadores que iniciam a sua jornada.
A neblina matinal levanta-se lentamente, há um sol de outono que ilumina as cores dos murais com episódios da vida dos líderes, que ilumina também os seus rostos no topo dos edifícios públicos. São sete horas e meia a mais do que em Portugal. Por decisão própria, a Coreia do Norte é o único país do mundo neste fuso horário. Assisto ao início de mais um dia em Pyongyang e sei que há outras realidades lá fora, mas aqui, para quem avança pelos passeios da capital da Coreia do Norte, só há esta realidade.
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Em períodos entrecortados, enquanto esperamos, falo em inglês com a guia do Museu da Vitória na Guerra de Libertação da Pátria. É uma militar fardada, tem 26 anos. Sorri bastante, está com vontade de falar.
Pergunta-me se sou casado, se tenho filhos. Diz-me que é solteira, vive com os pais e com uma irmã. Pergunta-me a idade do Cristiano Ronaldo. A irmã é grande admiradora de futebol e encarregou-a de recolher essa informação. Os estrangeiros que por ali passaram nos últimos meses não foram capazes de responder. Acha-o demasiado velho, diz que a irmã vai ficar decepcionada.
A nossa conversa é interrompida pelas explicações que dá sobre as diferentes salas do museu, sobre a guerra da Coreia ou, como ela lhe chama, a guerra de libertação da pátria. É uma história de avanços e recuos, determinados pelas perversões cobardes dos imperialistas americanos e pelo heroísmo do povo e do exército da Coreia, sempre com a sábia direção do presidente Kim Il-sung.
Ao esperarmos outra vez, pergunto-lhe acerca da situação atual. Ri-se. Sabe que os americanos têm um presidente novo, mas diz que as suas ameaças não são novas. Os americanos são patéticos e ninguém tem medo deles.
Ao entramos na sala seguinte, a guia comove-se. Estamos na sala dedicada às atrocidades cometidas pelos americanos durante a guerra. Pergunto-me se sentirá a mesma comoção sempre que faz esta visita. Mas, volta a animar-se logo a seguir, ao entrarmos na sala da gloriosa vitória do povo coreano.
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Qual será o futuro destas crianças de cinco ou seis anos? Esperam por nós alinhadas no pátio da escola primária da cooperativa agrícola. É de manhã, ouve-se um silêncio de pássaros no interior da neblina, ruídos da natureza e da terra a ser trabalhada. Quando nos aproximamos, a professora começa a tocar acordeão e, fazendo gestos sincronizados, vozes de criança cantam canções infantis sobre a grandeza da Coreia e dos líderes.
E os alunos da escola secundária Kang Pan-sok? Qual será o seu futuro? A escola tem o nome da mãe de Kim Il-sung e fica no centro de Pyongyang. Os alunos passam a sua adolescência nestes corredores. O rosto de alguns está muito sério nas fotografias do quadro de honra. A esta hora, há rapazes a jogar futebol, grupos de raparigas a conversarem. Em certos cantos, alguns estudam cadernos de páginas cinzentas. Talvez estejam a rever a matéria sobre a vida dos líderes. História das Atividades Revolucionárias de Kim Il-sung, ou de Kim Jong-il são disciplinas obrigatórias.
E também os meninos-prodígio do Palácio das Crianças. Milhares de jovens assistem a este espetáculo num grande teatro. No palco, meninas fazem bailados sobre o desenvolvimento tecnológico da Coreia do Norte, por exemplo. Um coro de rapazes, pioneiros de lenço vermelho, é acompanhado por palmas. Cantam à frente de um vídeo com mísseis a serem disparados e bombas a explodirem. Essa é a atuação mais aplaudida do espetáculo.
Qual será o seu futuro? Qual será o nosso futuro?
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No paralelo 38, junto à linha onde se dividiu a península da Coreia, há sempre muitos pássaros. Cruzam a fronteira livremente, indiferentes ao que se pensa em terra.
Os militares sul-coreanos deixam o seu posto quando há a visita de turistas estrangeiros a partir do norte. Terão os seus motivos para fazê-lo.
Para além das cinco vezes em que estive no lado norte, também já visitei o paralelo 38 a partir do sul. Nesse lado, não deixam os visitantes aproximar-se da fronteira, repete-se que é muito perigoso. Todos acreditam e, assustados, ficam a centenas de metros, a ver por binóculos aquilo que tenho agora à minha frente.
Acompanho um militar e entro numa das salas azuis que se veem sempre na televisão, divididas pela fronteira, onde são feitas as conversas entre norte e sul. No interior dessa casa, azul também por dentro, ponho um pé de cada lado.
Na sua volta ao mundo, o paralelo 38 do hemisfério norte, também atravessa Portugal. Passa nos distritos de Beja e Setúbal.
À saída, dou um volume de cigarros ao militar, que fica surpreendido, apesar de o ter pedido a uma das guias que me acompanha e que me sussurrou: dê-lhe agora os cigarros.
Estou a 70 km de Seul mas, para chegar ao outro lado desta fronteira, terei de fazer 160 km por estrada até à capital da Coreia do Norte, apanhar lá um avião para a China e, daí, apanhar outro para a Coreia do Sul. Amanhã, farei essa viagem, durará todo o dia.
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Nos últimos 65 anos, não são muitas as pessoas que sabem o que é, no mesmo dia, despertar de manhã na Coreia do Norte e adormecer à noite na Coreia do Sul.
O consumo de informação que sucede a chegada de internet ao telefone é um choque, dá-me uma sensação física. Sinto o sangue a correr mais depressa nas têmporas, uma ligeira tontura.
Depois, tudo é uma incrível novidade: as luzes, o trânsito, a publicidade e, sobretudo, as pessoas, convictas do seu mundo.
Caminho ao longo da praia Haeundae, em Busan — a segunda cidade da Coreia do Sul, com 3 milhões e meio de habitantes. Passo por artistas de rua com mais ou menos público, cantores de canções melancólicas acompanhadas à viola. Cruzo-me com famílias que também fazem este passeio ou que se sentam na areia, sobre cobertores. A esta hora da noite, a escuridão faz o mar ainda mais infinito. No entanto, sei que após três horas de ferry boat se chega a Osaka, no Japão.
Hoje, há um festival de fogo de artifício. Assisto a estas explosões coloridas. Em toda a praia, a multidão faz longas e colectivas exclamações de espanto. Na memória, nos olhos, levo ainda as imagens da Coreia do Norte, onde acordei hoje de manhã. Sei que eles estão lá, numa noite sem luz. Diante das formas que enchem este céu, parece-me que essa verdade é demasiado grande para ser dita. Vinte e quatro milhões de norte-coreanos — gente com famílias como estas, capazes de espanto como este. Aqui, é muito difícil explicar essa verdade simples.
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Ainda em Busan, no sul da Coreia do Sul, olho pela janela do meu quarto enquanto ouço as notícias em inglês na televisão. Ontem, o secretário de defesa dos Estados Unidos visitou a fronteira. Ao seu lado, o ministro da defesa da Coreia do Sul declarou que, se a guerra começar, a artilharia da Coreia do Norte será destruída imediatamente.
Lá em baixo, nas ruas de Busan, as pessoas caminham pelos passeios. Dirigem-se talvez para lugares onde vão todos os dias.
Em estúdio, de fato e gravata, os comentadores dizem que a Coreia do Norte tem 21 batalhões estacionados no seu lado do paralelo 38 e que, mesmo que a artilharia fosse destruída, seria impossível deter a sua capacidade de retaliação (incluindo armas químicas, biológicas e nucleares) antes de alcançarem Seul.
O lugar que me calha no comboio de alta velocidade é ao lado de um militar sul-coreano. É um rapaz bastante alto, terá talvez pouco mais de vinte anos. Com a mão ,segura um copo de plástico com café gelado; com a outra mão, escreve mensagens no telemóvel. O seu uniforme tem um padrão camuflado, com a bandeira da Coreia do Sul no ombro. Ao peito, tem uma placa de pano, chama-se qualquer-coisa Kim.
Aproximamo-nos de Seul a cerca de 300 quilómetros por hora. A cada fôlego, estamos mais próximos de Seul. Ele chega ao fim do café gelado. Pousa o telemóvel por instantes, tira a tampa do copo de plástico e começa a mastigar as pedras de gelo.
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Chama-se Chui. Não tenho a certeza de que o seu nome se pronuncie assim. Talvez por se ter cansado de ouvir o seu nome mal pronunciado, adoptou o nome de Glória para falar com estrangeiros. Diz-me que a relação com a Coreia do Norte, depende das gerações.
A avó conheceu a península antes da guerra e da divisão. Esse era um assunto que lhe custava muito. A mãe herdou essa dor, mas já um pouco atenuada. A ela própria, por várias vias, foi-lhe transmitida uma imagem muito negativa da Coreia do Norte: os inimigos. Já a filha, de nove anos, aprende na escola atual lições sobre toda a península da Coreia, traz trabalhos de casa sobre o norte e até lhe ensina algumas coisas.
Peço para traduzir o texto de alguns cartazes que fotografei com o telemóvel na Coreia do Norte. Um deles tem o desenho de muitos mísseis e diz: "A resposta de Choson" (que é o nome que a Coreia do Norte dá a si própria). Outro, também com mísseis, diz: "Não seremos derrotados, somos uma potência nuclear". Chui/Glória ri ligeiramente ao ler estas frases.
Pergunto-lhe se não tem medo. Continua divertida ao responder que há trinta e cinco mil soldados americanos na Coreia do Sul e que, por isso, não tem medo de nada.
Relembro-lhe aquilo que sabe melhor do que eu, que Seul está tão perto da fronteira e volto a perguntar-lhe se não tem medo. Volta a responder-me que há trinta e cinco mil soldados americanos na Coreia do Sul e que, por isso, não tem medo de nada.
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A embaixada dos Estados Unidos fica na avenida mais emblemática de Seul, a poucos metros do palácio Geongbokgung, o principal do país, o palácio real. Às sete da manhã, os manifestantes permanentes estão na posição de lótus, sentados sobre esteiras. Têm os olhos fechados, fazem meditação antes de iniciar o dia.
Os polícias estão no seus postos habituais, são dezenas diante da entrada, estão a poucos metros uns dos outros, cobrem o muro com os seus casacos de amarelo fluorescente. Na rua lateral, há meia dúzia de autocarros da polícia estacionados.
À medida que os manifestantes despertam da sua meditação, vão-se juntando em grupos que conversam quase em silêncio. Enchem chávenas de plástico com termos de chá, libertam grossas nuvens de vapor. Sentindo a minha presença, há um que se aproxima e que me estende um panfleto e um sorriso.
Ele sabe que não entendo coreano, são poucos os estrangeiros que entendem, mas acredito que saiba também que entendo os desenhos do panfleto: de um lado, uma caricatura de Trump ao lado de Hitler; do outro, o rosto de Trump a ser espezinhado por vários sapatos, no centro de uma poça de sangue.
Aqueles que se opõem à presença americana no país são uma minoria, mas existem. Durante as grandes manifestações, são milhares. Aqui, têm fitas atadas à testa e cartazes, têm uma coreografia sincronizada com as palavras de ordem que repetem em coro. Quando Trump chegar, não poderão estar aqui, a poucos metros da embaixada dos Estados Unidos. Onde estarão nessa hora?
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Rodeado pelos grandes arranha-céus de Seul, é difícil imaginar que Kaesong fica apenas a 70 quilómetros daqui.
A autoestrada mais importante da Coreia do Norte é a que liga Pyongyang a Kaesong e que, a cada x quilómetros, tem longas colunas de cimento que se destinam a ser derrubadas com explosivos e a cortarem a estrada, no caso de entrarem invasores no país.
No centro de Seul, o trânsito está quase sempre engarrafado por carros de fabrico coreano, topos de gama de marcas que conhecemos em todo o mundo e outras apenas disponíveis no mercado sul-coreano. As ruas principais de Kaesong são muito largas para as bicicletas que as atravessam. Às vezes, passa um carro também.
No ponto mais alto de Kaesong, junto às enormes estátuas de Kim Il-sung e de Kim Jong-il, escutam-se cães a ladrar, pedaços de vozes perdidos na distância e um grande silêncio que atravessa a neblina.
Na Torre de Seul, o ponto mais alto da cidade, vê-se uma capital a perder de vista, a tocar o horizonte, uma máquina complicada de relações entre dez milhões de pessoas.
Entre Seul e Kaesong, não há apenas a distância de 70 quilómetros. Há uma distância muito maior, uma lonjura no tempo, naquilo que as pessoas são capazes de imaginar e de entender.
Amanhã, vou regressar ao meu país, a milhares de quilómetros daqui. Sem motivo, mas muito a propósito, lembro-me de um balão que vi no templo Bulguksa, em Gyeongju. Entre centenas de outros, com etiquetas onde se escrevem pedidos, havia um assinado por uma família francesa. Apenas tinha a palavra "paz".
(Algumas edições de Dentro do Segredo)
Com sons reais captados na Coreia do Norte pelo próprio, José Luís Peixoto fez uma reportagem de rádio transmitida pela Antena 1.
Para escutar, clicar AQUI.
Os testes de armamento na Coreia do Norte não começaram com a eleição de Trump. Em abril de 2012, mal chegou ao poder, o jovem Kim Jong-un lançou o seu primeiro foguete de longo alcance. Explodiu no ar cerca de um minuto após o lançamento. Atingiu uma altitude de 94 milhas, quando deveria ter chegado às 310 para atingir o objetivo de colocar um satélite em órbita. Os Estados Unidos duvidaram dessas intenções, insinuaram tratar-se de um teste de mísseis encoberto e endureceram as sanções que já estavam em vigor. Desde 2012, estima-se que a Coreia do Norte tenha levado a cabo cinco testes de armamento nuclear e cerca de cinquenta disparos de mísseis balísticos. O último destes, a 29 de abril deste ano, não chegou a sair do território nacional, tendo caído em terra. O anterior, a 16 de abril, também foi um fracasso, caiu logo após o lançamento.
A Coreia do Norte é um país onde ainda circulam camionetas movidas a lenha. Atrás, na caixa de carga, têm uma caldeira e um soldado sentado ao lado de uma pilha de lenha. Lançam um fumo denso e branco, andam muito devagar. As camionetas Sungri-58 começaram a ser produzidas na Coreia do Norte a partir de 1958, até meados dos anos 60. Hoje, ainda se encontram muitas. Sobretudo na berma das estradas, com dois ou três homens parados diante de um capô aberto, a tentarem consertar uma avaria. A Coreia do Norte é um país onde se aproveita cada prego enferrujado, onde tudo é remendado mil vezes.
A pobreza é pouco visível para a maioria dos turistas que visitam o país. Por um lado, a grande pobreza não existe na capital ou nos lugares que os estrangeiros costumam visitar. Apesar das faltas de energia e outras carências, é na capital que vivem as elites mais privilegiadas. Não há camionetas a lenha a circular nas avenidas de Pyongyang. Por outro lado, de acordo com as suas referências, os estrangeiros associam a miséria à desordem, à incúria do espaço público. Eis algo difícil de testemunhar na Coreia do Norte. Tudo está sempre muito apresentável por fora.
Ainda assim, há dados sobre essa pobreza. As várias organizações não-governamentais no terreno referem que um quarto das crianças do país sofrem de malnutrição, o que se repercute em atrofia, raquitismo, anemia, etc.
Tive oportunidade de assistir a imagens dessa grande pobreza no leste do país, nomeadamente nas regiões de Hamhung e Pujon. Desde 2012, fiz quatro viagens à Coreia do Norte. Uma delas durou quase três semanas e, adicionada a múltiplas leituras e outras fontes de informação, serviu de base para a escrita do livro Dentro do Segredo, uma viagem na Coreia do Norte. Nestas ocasiões, já vi e fotografei muitos Sungri-58. Não esqueço as crianças que tenho encontrado nas regiões rurais e nas cidades mais remotas: mal vestidas para o frio, sujas, extremamente magras, os olhares perdidos, medo e desconfiança.
Foi também ao vivo que assisti por duas vezes a enormes desfiles militares em Pyongyang — em abril de 2012, nos 100 anos de Kim Il-sung; em outubro de 2015, nos 70 anos do Partido dos Trabalhadores da Coreia. Nesses dias de festa, milhares de pessoas chegam de fora da cidade. Ao longo de muitos quilómetros de avenidas largas, há multidões aos gritos e a agitarem flores aos militares que passam sorridentes, no topo de veículos de guerra, com os seus melhores uniformes. Primeiro, é a vez dos pequenos jipes; depois, as viaturas vão crescendo em tamanho e poder de destruição. O apogeu acontece na passagem dos mísseis, que foram exibidos pela primeira vez justamente no desfile de 2012. Enquanto isso, nos céus, os aviões compõem formações acrobáticas, lançam fumos coloridos.
Nesses desfiles, só mesmo os norte-coreanos não se apercebem do quanto essas máquinas são obsoletas. O fumo dos canos de escape deixa o ar irrespirável, o barulho dos motores não permite conversas. Até do chão se vê que, lá em cima, os aviões têm muitas dezenas de anos, como é o caso dos MiG, fabricados na União Soviética durante os anos 50 e 60 do século passado. Se eu sei isto, os serviços de informação dos Estados Unidos também sabem.
Já estive nos dois lados do paralelo 38. Já vi a Coreia do Sul a partir do lado norte e já vi a Coreia do Norte a partir do lado sul. Menos de 60 quilómetros separam o ponto mais tenso da fronteira e o centro de Seul. No entanto, quando se fala com os sul-coreanos sobre esse assunto, raramente algum demonstra receio ou apreensão. O sentimento mais comum é a pena. Na Coreia do Sul, a população sabe muito mais sobre a real situação da península do que um leitor ocidental de jornais. Sabe da pobreza, do atraso tecnológico e militar, sabe também que as ameaças do regime de Pyongyang existem há décadas, nunca pararam, são ininterruptas. Não começaram com a eleição de Trump.
Recentemente, os Estados Unidos instalaram um sistema de defesa antimísseis no território da Coreia do Sul. Nas notícias breves do ocidente chamou-se a atenção para a oposição da China, deixando implícito que esse posicionamento se devia à defesa dos interesses da Coreia do Norte, seu suposto aliado. No entanto, quem se dê ao trabalho de procurar um dos poucos artigos mais longos, de maior profundidade, rapidamente se apercebe que a China se opõe porque teme que as suas próprias informações sejam permeáveis ao poderoso radar do sistema antimísseis americano.
É também curiosa a quase ausência de referências na imprensa ocidental às manifestações de sul-coreanos contra a instalação do sistema antimísseis americano. Com receio das radiações emitidas pelo radar, essas manifestações terminaram em violentos confrontos com a polícia. Como se explica que estejam mais preocupados com radiações do que com a ameaça nuclear que têm a poucos quilómetros? Trata-se de gente que não se informa exclusivamente na Fox News.
As relações diplomáticas com a China são apenas um exemplo dos múltiplos equívocos, mais velados ou mais expostos, que grassam na imprensa ocidental acerca desta matéria. Em fevereiro passado, a China deixou de comprar carvão à Coreia do Norte — aquela que é, de longe, a principal exportação do país, quase a única. Também a partir dessa data, os voos da Air China para Pyongyang foram interrompidos. Há anos que, reiterada e publicamente, a China tem pedido à Coreia do Norte que suspenda os seus testes de armamento, sem qualquer sucesso. Em 2013, Kim Jong-un mandou executar o tio — um alto oficial do regime —, sendo uma das razões mais prováveis a simpatia deste pelos modelos económicos chineses. Seria fácil enumerar outros sinais da falta de relação entre Pequim e Pyongyang, não falta eloquência às prateleiras vazias da Coreia do Norte, ainda assim, por todo o lado se repetem notícias sobre essa aliança.
A simplificação, a supressão de certos temas e a exaltação de outros são os principais pecados da imprensa internacional acerca deste assunto. Outro exemplo: a 7 de maio, foi detido um cidadão americano na Coreia do Norte. Atualmente, há 4 presos americanos nas cadeias norte-coreanas. Desde o início do século XXI, contando com estes, a Coreia do Norte deteve 17 estrangeiros: 15 norte-americanos, 1 canadiano e 1 australiano. A notícia destas detenções foi sempre amplamente noticiada: as confissões públicas, as penas exageradas sem direito a recurso — oito, dez, quinze anos em campos de trabalho. Mas quem sabe o que aconteceu depois? De todos os presos americanos na Coreia do Norte, apenas 3 não foram libertados antes do fim do primeiro ano. Entre esses, muitos escreveram livros e tentaram promover a sua história. Nenhum teve sucesso. A imprensa não se interessou por dar eco desses relatos: um quarto de hotel com guardas na porta e, após meses ou semanas, a libertação por intercepção da diplomacia norte-americana.
A Coreia do Norte é um país sem recursos naturais cobiçados internacionalmente. Há dados objetivos que dão mostras da insignificância do seu poder militar. As ameaças são o seu discurso de sempre, cumprem uma agenda interna e externa. Então, porquê atacar a Coreia do Norte? Os mais crédulos argumentam com a extrema pobreza a que o regime submete o seu povo. Esquecem-se talvez que os Estados Unidos têm excelentes relações com países como o Chade, um dos mais pobres do mundo, apesar dos mais de 100 mil barris diários de petróleo que os texanos da Exxon Mobil retiram diariamente do seu solo. Esquecem a Índia, por exemplo, que tem cerca de 170 milhões de pobres — indivíduos que sobrevivem com menos de 2 dólares por dia. Porquê atacar a Coreia do Norte? Outros, igualmente crédulos, respondem que se trata de um país onde existe uma ditadura terrível. Duas palavras para esses desatentos: Arábia Saudita. Sem que seja ouvido até dentro da sua própria instituição, o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas tem alertado para as práticas correntes de tortura e de outras formas de tratamento degradante no sistema judicial saudita. Esse é o país em que, desde a semana passada, as mulheres ganharam o direito de ir ao médico sem consentimento dos homens. No entanto, ainda não podem conduzir ou ocupar qualquer cargo público, por exemplo. E foi justamente a Arábia Saudita que o presidente dos Estados Unidos escolheu para iniciar a sua primeira viagem oficial ao estrangeiro.
Salvar o povo, bombardeando-o, matar milhares de inocentes para salvar outros tantos, é não reconhecer valor ao outro, é pensar como Kim Jong-un, é um raciocínio de uma superficialidade criminosa, assassina.
Mas se a Coreia do Norte está na mesma, porque tem havido isto a que decidiu chamar-se "escalada de tensão"? O que mudou?
Mudou o presidente dos Estados Unidos. Donald Trump — refletindo sobre este assunto, é muito fácil esquecermos que o presidente dos Estados Unidos é Donald Trump, aquele do twitter, do penteado, das fake news. Será que Trump teria alguma coisa a ganhar em termos de notoriedade — interna e externa — com um conflito, e subsequente vitória militar, na Coreia do Norte? Quando comparado com um bad guy como Kim Jong-un, até Trump parece um good guy.
Hoje, a população da Coreia do Norte ultrapassa os 25 milhões. No ano passado, Tony Blair apresentou uma espécie de pálidas desculpas perante a confirmação de que não havia armas de destruição maciça no Iraque — razão apresentada para o início de uma guerra, onde foram mortos mais de 113 mil civis. Vamos passar pelo mesmo?
Não estou a defender o regime da Coreia do Norte. Chegámos a este ponto, sinto a obrigação de me justificar, apenas por não dizer aquilo que todos dizem. Este assunto tornou-se tão preto e branco, tão bons versus maus, que, mesmo dispondo de informação altamente superficial, qualquer um se sente no direito de gritar insultos com maiúsculas na caixa de comentários, cheio de certezas para um lado ou para outro. Além disso, a península da Coreia é suficientemente distante para que o debate seja apenas abstrato, com os argumentos a servirem ícones para fantasmas.
No meio, entre as palavras, entre os mísseis, estão mais de 25 milhões de pessoas. Não são uma massa homogénea e informe, são pessoas, são um número imenso de pessoas. Ao contrário do que se escreve e repete em toda a parte, a Coreia do Norte não é Kim Jong-un. A Coreia do Norte são essas pessoas. Quem pensa nelas?
José Luís Peixoto, in Expresso (13 de maio de 2017)
Desde o interior da ditadura mais repressiva do mundo, desde um país coberto por absoluto isolamento, Dentro do Segredo.
Em Abril de 2012, José Luís Peixoto foi um espectador privilegiado nas exuberantes comemorações do centenário do nascimento de Kim Il-sung, em Pyongyang, na Coreia do Norte.
Também nessa ocasião, participou na viagem mais extensa e longa que o governo norte-coreano autorizou nos últimos anos, tendo passado por todos os pontos simbólicos do país e do regime, mas também por algumas cidades e lugares que não recebiam visitantes estrangeiros há mais de sessenta anos.
A surpreendente estreia de José Luís Peixoto na literatura de viagens leva-nos através de um olhar inédito e fascinante ao quotidiano da sociedade mais fechada do mundo.
Repleto de episódios memoráveis, num tom pessoal que chega a transcender o próprio género, Dentro do Segredo é um relato sobre o outro que, ao mesmo tempo, inevitavelmente, revela muito sobre nós próprios.
O novo livro de José Luís Peixoto,Dentro do Segredo, Uma viagem na Coreia do Norte, chega às livrarias portuguesas, a 16 de Novembro de 2012.
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