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Os assuntos que mais inflamam as redes sociais e, por consequência, os mais apetitosos para o algoritmo, são também os que mais perdem ao ser debatidos nesse espaço de superficialidade e argumentos grosseiros. A complexidade do debate transforma-se num conflito reles entre perfis a arremessarem clichés uns aos outros. Caso se tratem de reflexões que, direta ou indiretamente toquem as questões da literatura, muito melhor é abordá-los nas Conferências Weidenfeld, na Universidade de Oxford.
Juan Gabriel Vásquez teve essa oportunidade em 2022 e, agora, temos nós a oportunidade de acompanhar essas reflexões por escrito. Ao longo de quatro conferências, que aqui correspondem a quatro capítulos, Vásquez apresenta algumas das suas preocupações relativas ao momento atual do romance. Logo na primeira, tira do caminho aquela que, com menos delicadeza, lhe poderia valer um cancelamento. Corajosamente, refere-se à chamada “apropriação cultural” que, neste caso, alude às ideias que põem em dúvida a legitimidade de se contar uma história a partir de uma perspetiva alheia.
Avançando por esse terreno minado, Juan Gabriel Vásquez escuta as queixas, os argumentos para essas ideias, reconhece-lhes algumas razões, respeita-os e, logo em seguida, apresenta a sua discordância e argumentos. Essa elegância estabelece os termos e as regras do debate e, a partir da clareza do raciocínio, leva a discussão para o território da literatura: a reflexão e os fundamentos.
Ao falar sobre romance contemporâneo, o pensamento de Vásquez pode ser extrapolado para muitas outras matérias que padecem das mesmas dificuldades de avaliação. Neste caso específico, além da alteridade, que é inseparável da ficção, traz também contributos para outros temas de sempre da experiência literária, como é o caso da relação com o tempo, que é o mesmo que dizer com a história, a transfiguração desta através do mistério, da forma, e a liberdade. Vásquez termina este ciclo de conferências referindo-se diretamente à liberdade mas, de facto, esse foi o grande tema que abordou desde o início.
Uma das marcas infalíveis que distingue um grande escritor é saber porque fez todas as escolhas presentes na sua escrita e, ao mesmo tempo, não saber. Ou seja, deve apresentar razões inteligíveis para as suas opções. Esse pensamento é a estrutura que confere solidez e pertinência. Antes ou durante o texto, o escritor identificou os elementos em causa, relacionou-os e tirou as suas conclusões. Ainda assim, quando leva esse raciocínio às últimas consequências, depara-se com as dúvidas que pertencem ao ser humano, à sua imperfeição. A este aparente paradoxo, essencial para a escrita e para a consciência da escrita, Vásquez chama “ética da ambiguidade” e, logo no início, cita Tchékhov. Quando um editor o criticou pela sua incapacidade de tomar posições inequívocas nos seus textos, Tchékhov escreveu: “Tem razão em exigir que um autor tome consciência do que faz, mas confunde duas coisas: responder às perguntas e formulá-las corretamente. Só esta última tarefa se exige de um autor.”
La Tradución del Mundo, Las Conferencias Weidenfeld 2022, Juan Gabriel Vásquez, Alfaguara (Espanha), 2024
(Publicado no Jornal de Letras, em fevereiro de 2024, na coluna "Fiquei a pensar", onde JLP escreve sobre as suas leituras.)
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