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Respeito

05.05.17

Há pouco mais de um ano, ninguém me fazia perguntas sobre Fátima e, no entanto, eu passava os dias a pensar em Fátima. Nessa época, escrevia um livro a que chamei "Em Teu Ventre" e que trata esse tema. Só tinha contado à minha família e, considerando os meus livros anteriores, poucos leitores suspeitavam que tivesse escolhido esse assunto.

 

De certo modo, escrever um livro é sempre um segredo. Enquanto as palavras ainda não estão no papel, já com o seu formato definitivo, existem apenas para quem as escreve. Nesse momento, são uma espécie de visão. Então, quando essas palavras são publicadas, o segredo é libertado no mundo: mistura-se com o olhar dos outros. Por consequência, muda a forma como os outros veem e, também, a forma como os outros nos veem.

 

Foi justamente nos olhares dos outros que encontrei as primeiras questões. Ainda sem terem lido uma página, quando se mencionava o tema "Fátima", todas as perguntas eram formas explícitas ou subliminares de me colocarem uma única pergunta: acredita?

 

Como sempre acontece, fui respondendo na medida das minha possibilidades. Em nenhuma ocasião respondi sim ou não. Por um lado, não creio que a resposta a essa pergunta seja apenas sim ou apenas não, a não ser que se simplifiquem as questões até ao seu elemento mais básico, tão básico que já não é sequer representativo do que se está a falar. Por outro lado, porque a minha intenção primeira, uma das que me levou à escrita do livro, foi justamente encontrar uma maneira de falar de Fátima que não passasse por esse separar de águas, esse muro divisor: acredita/não acredita.

 

Nem todas as pessoas que afirmam acreditar em algo comum o fazem da mesma forma. Acreditar não é preto e branco. Também me parece que nem todas as pessoas são cépticas da mesma forma. Há inúmeras gradações e particularidades no que toca à crença e/ou à fé. Não existe um interruptor para a fé ou o cepticismo. Até a luz eléctrica, que utiliza interruptores, não é igual em todas as circunstâncias, depende da lâmpada, da intensidade da corrente e de uma série de outros elementos que os eletricistas saberão enumerar. Até a escuridão, estou convencido, não é sempre igual.

 

Assim, depois de tentar superar a dificuldade de escrever um livro que tratasse a questão de Fátima de forma direta, concreta, honesta e que recusasse essa segregação prévia, fiz uma sequência de apresentações em todo o país. Ao vivo, diante de públicos que não estavam claramente de um ou de outro lado dessa linha, assisti ao jeito como a conversa custava a iniciar-se, o desconforto que as pessoas começavam por ter e, depois, à medida que eu continuava a falar, assisti também à forma como essas mesmas pessoas se iam libertando e, a pouco e pouco, intervindo sobre um tema que, afinal, no nosso país, toda a gente conhece e tem alguma coisa a dizer.

 

Fátima é um tema multidimensional. Ao longo destes cem anos, assumiu uma enorme importância política e social. Em grande medida, pode dizer-se que houve uma certa sensibilidade acerca deste tema que foi paralela às próprias alterações políticas e sociais do país. Por tudo o que dizem sobre nós, essas são questões de grande interesse, que merecem ser levantadas, observadas e reflectidas.

 

Já no que toca à sua dimensão religiosa, Fátima é um assunto que está na esfera da sensibilidade íntima de cada um. A liberdade religiosa é uma conquista civilizacional. Não devemos estar dispostos a abdicar dela em nenhuma circunstância.

 

Nesse sentido, é fundamental que crentes e cépticos se saibam respeitar entre si, só assim poderá existir um diálogo edificante. Não vejo razões para duvidar que uns possam aprender algo com os outros. Se não estivermos de ouvidos fechados, de olhos fechados, podemos sempre aprender algo com os outros, podemos sempre descobrir algo novo. E os outros, claro, não são uma abstração. Os outros são aqueles que têm opiniões realmente diferentes das nossas.

 

Assim, não vou aqui afirmar a minha crença ou a falta dela em relação às aparições de Fátima. Não sinto necessidade de o fazer e, ao mesmo tempo, não quero tingir as leituras que possam ser feitas do meu livro com as cores desses preconceitos. Tenho a ambição de que o meu livro não seja apenas um afago tranquilizante que estes ou aqueles usam para se autojustificar. Em vez disso, desejo que seja um confronto com uma perspetiva diferente, nova, de algo que talvez já estivesse cristalizado, que já não se visse realmente.

 

José Luís Peixoto, in Fátima XXI (Outubro de 2016)

 

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