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Em 2017, José Luís Peixoto escreveu o seguinte prefácio à edição espanhola de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, publicada na coleção de Clássicos da Penguin.
MONÓCULO
A 12 de julho de 1871, numa sala do Casino Lisbonense, Eça de Queirós proferiu uma conferência com o título "A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte". A esta distância, podemos imaginar o público, os bigodes, as cartolas, os assentimentos de concordância ou os sussurros de reprovação; podemos imaginar o som da voz de Eça. Podemos até imaginar o texto original dessa conferência, uma vez que não chegou ao nossos dias, perdeu-se. No entanto, os ecos dessas palavras nos jornais da época são claros, permitem-nos saber que Eça rejeitou com veemência o romantismo, cuja influência era omnipresente, e defendeu com a mesma força aquilo a que chamou realismo.
António Salgado Júnior fez uma credível reconstituição de fragmentos dessa conferência e, segundo esse trabalho, Eça terá afirmado que o realismo "é uma base filosófica para todas as concepções do espírito — uma lei, uma carta de guia, um roteiro do pensamento humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim considerado, o realismo deixa de ser, como alguns podiam falsamente supor, um simples modo de expor — minudente, trivial, fotográfico. Isso não é realismo: é o seu falseamento. É o dar-nos a forma pela essência, o processo pela doutrina. O realismo é bem outra coisa: é a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. (...) É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o realismo é uma reação contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos — para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade."
Conhecidas como as "Conferências do Casino", foram organizadas pelo poeta Antero de Quental e são frequentemente referidas como o manifesto de toda uma geração literária, em confronto estético e político com o status quo da época. Com essa mesma carga programática, a participação de Eça é especialmente reveladora das ideias que servem de alicerces à obra que começava então a erguer. A reforma proposta é multidimensional, quer tocar diferentes níveis da vida e do pensamento do país. Nesse contexto, a literatura renuncia à preferência romântica pelo indivíduo e afirma-se como uma via de investigação social.
É nesta sequência que, em 1875, surge a primeira versão de O Crime do Padre Amaro, em folhetins, publicada em A Revista Ocidental. A construção do enredo tem uma clara intenção colectiva, retratando um Portugal hipócrita, tacanho. Se é verdade que se pode fazer uma leitura à luz das circunstâncias específicas da época, não é menos certo que hoje, quase 150 anos depois, continua a existir pertinência nas interpretações que o romance sugere. Essa primeira versão, no entanto, tinha características bastante diferentes das duas que lhe seguiram. Ao nível do tratamento do tema, faltava-lhe subtileza, o que originou críticas de Camilo Castelo Branco, o outro grande romancista português do século XIX. Essa diferença entre versões nota-se na própria extensão do texto: a versão de 1875 tem pouco mais de 140 páginas; a segunda, publicada em 1876, tem o dobro desse tamanho; a terceira, de 1880, é mais do dobro da segunda.
Assim, na vida de Eça, considerando o prefácio que fez para a segunda versão, este romance começou a ser escrito a par do seu ingresso na administração pública, em 1870, com 25 anos, ao ser nomeado administrador do concelho de Leiria, cidade onde a narrativa do romance tem lugar. Mas continuou a ser trabalhado após a sua entrada na carreira diplomática, em 1873, quando foi colocado em Havana; acompanhando-o também nos seus postos ingleses de Newcastle e Bristol, onde permaneceu entre 1874 e 1878.
Antes da primeira edição de O Crime do Padre Amaro, Eça de Queirós já tinha escrito as colaborações na imprensa que, postumamente, se reuniram sob o título Prosas Bárbaras; também já tinha composto os textos que, anos mais tarde, se publicariam no volume a que se chamou O Mistério da Estrada de Sintra, escrito a meias com Ramalho Ortigão, e que constitui a primeira obra do subgénero policial da literatura portuguesa. Ainda assim, O Crime do Padre Amaro é o primeiro livro publicado, a estreia. Além da importância que tem no contexto da literatura portuguesa, tem também a particularidade de varrer as marcas de romantismo que ainda existiam nos referidos textos iniciais, com edições posteriores. Utilizando o subtítulo Cenas da Vida Devota, marca o princípio do realismo português e, entre todas as páginas que se produziram, é considerado por muitos, entre os quais me incluo, uma das obras mais extraordinárias desse movimento. Não me parece exagero afirmar que, em absoluto, se encontra entre os romances de estreia mais impressionantes do século XIX.
Zola é uma das influências notórias que tocam a obra de Eça de Queirós, em geral e neste caso em particular. Em 1881, o autor francês começa a publicar Les Rougon-Macquart, que é o título genérico dos vinte romances que escreve entre 1871 e 1893; o subtítulo dessa sequência é: História Natural e Social de uma Família sob o Segundo Império. Machado de Assis, o grande romancista brasileiro contemporâneo de Eça, chegou a acusar O Crime do Padre Amaro de ser uma imitação de pouca qualidade de La Faute de l'Abeé Mouré, de Zola, o quinto volume da referida série, publicado igualmente em 1875. Para além das semelhanças do título, no prefácio à terceira versão do romance, é o próprio Eça que aponta as diferenças fundamentais entre as duas obras, caracterizando essa acusação como uma "obtusidade córnea ou uma má fé cínica". De facto, o que Eça bebe de Zola é, sobretudo, a ideia de uma escrita literária enquanto espécie de ciência social e humana: aquilo a que Zola chamou "naturalismo" e a que Eça chamou "realismo".
É certo que ambas as obras têm como protagonista um elemento do clero que se envolve com uma mulher, rompendo os seus votos; ainda assim, no caso de Zola, trata-se de um texto próximo da parábola, cuja ação tem lugar num espaço idílico, enquanto que no caso de Eça, se trata de uma censura muito direta a um Portugal provinciano, regido por uma moral fingida, onde a igreja católica condensa e difunde essas caraterísticas negativas.
Na lógica criada pelo romance, são os condicionalismos da igreja e do sacerdócio que, em vez de atenuar, agravam a decadência moral de Amaro. Trata-se de um mundo onde a ideia de pecado está sempre presente, norteia todas as escolhas, ainda que essa lógica seja fortemente distorcida a favor dos interesses momentâneos. "Somos homens", diz Amaro para o cónego. Realmente, a partir de certo momento, para lá do desrespeito dos votos de sacerdote, vemo-lo jurar em vão, mentir, amaldiçoar a religião e, mesmo, desejar a morte de crianças e fetos, ser conivente com a crueza insensível da "tecedeira de anjos".
No entanto, apesar de estarmos perante um romance que se insurge de modo tão ostensivo contra a igreja católica, a reação desta a essa edição foi o silêncio. As poucas centenas de exemplares que, com um empréstimo do pai, Eça mandou imprimir estavam longe de chegar a um vasto público. As classes sociais baixas eram maioritariamente analfabetas, enquanto que as classes mais elevadas tampouco tinham suficiente estofo e espírito crítico para uma leitura daquela densidade. O impacto que o livro teve na sociedade não foi suficiente para intimidar uma instituição desse tamanho e importância. No romance, há momentos em que a igreja católica é representada com uma máscara de protetora inequívoca da seriedade, sinónima absoluta da ordem. O peso dessa entidade, quase um Estado dentro do Estado, não se perturbou perante o romance de Eça. Para além disso, o diplomata estava longe, em Inglaterra, não participava no quotidiano de intrigas nacionais, era uma voz remota. Isto apesar de, nos anos que se seguiram, Eça de Queirós alcançar, pela primeira vez entre os escritores portugueses, uma carreira internacional, com algumas das suas obras a serem traduzidas para diversos idiomas. Este sucesso, no entanto, acabou por acontecer sobretudo com outros títulos e, também nessa dimensão, a igreja católica da época não estava atenta ao ponto de se sentir ameaçada.
Em subtilezas bastante evidentes, é de notar que os aspectos morais e religiosos são proporcionais a uma dimensão política, de poder. Esse é caso, por exemplo, do episódio em que, por via de uma rede de influências, João Eduardo é preso devido ao murro desajeitado que dá no ombro do padre Amaro. A igreja católica apresenta-se, portanto, como uma força subterrânea, uma autoridade implacável e inescapável. Essa potência, dirigida não apenas pelo clero corrupto, mas também pela burguesia hipócrita, é nas páginas de O Crime do Padre Amaro um veneno que inquina toda a sociedade portuguesa e que, de certa forma, a representa na sua totalidade. Eça deixa pouco espaço para a inocência das vítimas. Praticamente todas as personagens são apresentadas com sarcasmo, com uma violenta ironia, afirmadas como perversas na sua mesquinhez e futilidade.
O provincianismo desta Leiria estereotipada é apresentado como uma característica negativa, de atraso. Para Eça, o provincianismo significa sempre e apenas isolamento daquilo que é progressista e que está lá fora, nas grandes cidades ou no estrangeiro. Por isso, faz todo o sentido que a cena final tenha lugar no Chiado, centro de Lisboa e daquele mundo, exato oposto do que Leiria representa no romance: longínqua periferia. Finalmente onde importa, no centro, Amaro não tem dificuldade de ignorar tudo o que aconteceu nesse outro espaço e tempo que, ali, parece irreal e inexistente.
Essa sensação de profunda injustiça completa o romance de tese que O Crime do Padre Amaro consegue ser. Para lá de todas estas questões, apesar delas, Eça alcança o feito de evitar a mediania que quase sempre contamina a literatura militante. O trabalho de Eça é de grande perspicácia linguística, de beleza e inteligência. Não há nenhuma dúvida de que pode ser lido hoje com o mesmo prazer, com a mesma fruição estética e humana que proporcionava no fim do século XIX, quando chegou pela primeira vez à mão de leitores.
José Luís Peixoto
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