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Tenho pena que estas palavras não sejam capazes de abrandar-te o ressentimento. O lugar onde existem, onde são capazes de chegar, não toca o lugar onde conservas esse ressentimento cristalizado. Estas palavras e o teu ressentimento são como universos paralelos num filme de ficção científica, coexistem no tempo, mas são absolutamente paralelos, estão condenados a nunca se encontrar. Constato esta impossibilidade e tenho pena. Creio que aproveitarias melhor o tempo sem esse chumbo ou, pelo menos, sem algum do seu peso. Tudo isto te parece estrangeiro, não te diz respeito. Não chamas ressentimento a essa força que te faz cerrar os dentes, a esse incómodo, não vês motivos para ver-te livre dele ou, sequer, para abrandá-lo. Habituaste-te a ele, acreditas que faz parte de ti. 

 

Sentes que foi cometida uma injustiça em relação a ti. Essa injustiça pode ter acontecido efetivamente, pode ter sido bastante cruel, mas também pode não ter acontecido. Não é isso que importa, apenas conta sentires que foi cometida uma injustiça em relação a ti. Sentes que a injustiça te inferioriza, talvez não te tenham reconhecido como achas que merecias. Essa dor, ruminada durante anos, formou o ressentimento que conservas. 

 

Agora, o mal-estar é já uma condição física. Passou das emoções para a atitude e, logo depois, passou da atitude para o corpo. Agora, vês o mundo através do ressentimento, é como um filtro, cobre-te o olhar. E, por isso, só já consegues pensar por intermédio dele. Seriam necessários anos de intensa fisioterapia para retirar-te o ressentimento da postura. A nível interno, está diluído em todos os teus fluídos. Ao correr-te no sangue, chega às artérias mais finas, irriga-te todos os órgãos. 

 

Sentes que foi cometida uma injustiça em relação a ti. Acreditas que essa dor te confere direitos. Precisas de infligir essa mesma dor aos outros. Hão de sofrer como sofreste, como sofres ainda. Acreditas que os outros merecem essa dor. Afinal, são eles os privilegiados. A balança que te castigou, favoreceu-os a eles. Os “outros” podem ser um grupo mais ou menos restrito, com características definidas, ou podem ser o mundo inteiro. Em qualquer dos casos, estás convencido de que o cinismo te protegerá. Não voltarás a acreditar em ilusões, enganos tocados pela inevitável injustiça, que apenas têm o propósito de conduzir-te a nova dor. Mas não conseguirão fazer-te sofrer de novo, perdeste essa inocência para sempre. Agora, serão eles a sofrer. E assim te intoxicas nos vapores do veneno que julgas guardar para os outros. 

 

Tenho tanta pena que estas palavras não sejam capazes de abrandar-te o ressentimento. Imagino estas palavras a chegarem à tua compreensão e, ao serem entendidas, a dissolverem essa pedra que carregas no interior. Também as palavras têm uma existência simultaneamente imaterial e material. É por isso que alimento esta fantasia. Imagino estas palavras a desembaraçarem um equívoco que te paralisa. Como aquele leão feroz dos desenhos animados a quem tiram um pico da pata e que fica dócil de um momento para o outro. Sim, já sei que, pela lente do cinismo, “dócil” é um adjetivo para fracos, mas repara como todo o mundo é fraco pela lente do cinismo. É provável que estas palavras te pareçam estrangeiras, que aches que não te dizem respeito. Tenho pena que estas palavras sejam incapazes de dizer-te que não merecias essa injustiça. Ninguém merece essa dor. Ninguém merece esse ressentimento ou seja lá como for que prefiras chamar-lhe. 

 

 

José Luís Peixoto, in jornal Ponto Final (Macau)

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