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Num tempo em que somos constantemente confrontados com a diferença entre fotografia e imagem, é significativo que, há mais de quarenta anos, Hervé Guibert tenha escolhido esta última designação para título da sua coleção de ensaios curtos. Parece-me agora que esse detalhe é mais um sinal do caráter profético destes textos, originalmente publicados em 1981. Na fotografia, há intenção profunda, é pensada, revelada, contemplada; a imagem apresenta-se instantânea, podemos identificá-la ou apenas intuí-la, a imagem pode ser visual ou alegórica. Hoje, vivemos um tempo que é muito mais de flashes, de estímulos, do que de fotografias a beneficiarem de tempo para interpretação. Talvez por isso, as reflexões deste livro são de uma lucidez absolutamente contemporânea.
Ao pensar a imagem, Guibert pensa a arte, a linguagem, a memória, a identidade, as relações, o corpo, a família, a idade, a experiência humana em inúmeras nuances. Ao mesmo tempo, pressupõe sempre o outro lado, o negativo, para usarmos um termo da fotografia. Esses fantasmas são o que podia ter sido, a sombra do que realmente foi, o que nunca será, são reflexos ou contrastes a partir do que inequivocamente aconteceu, do que se testemunhou. Talvez o ficcional seja um fantasma do documental.
Entre memórias pessoais, afetuosas, muitas vezes a partir delas, Guibert desenvolve raciocínios claros e constrói conclusões universais. A escrita na primeira pessoa é sempre uma espécie de autorretrato. Na leitura, ao partilharmos essa intimidade, também nós somos muitas vezes refletidos nesse espelho. Então, mais do que autoficção, ou ensaio pessoal, ao ser avaliado a partir da perspetiva do autor, talvez faça sentido falar de ultraficção, somos nós que ficcionamos a partir do que nos é exposto. Sabemos que 1981, Hervé Guibert tinha 26 anos. Sabemos que morreria dez anos depois. Partimos para esta leitura com esse conhecimento e, por isso, sabemos mais do que o narrador, do que a personagem, que comparamos constantemente com o autor. Todos eles são fantasmas uns dos outros ou, quem sabe, talvez sejam fantasmas de nós.
A Imagem Fantasma, Hervé Guibert, tradução e prefácio de Amândio Reis, BCF Editores, 2023
(Publicado no Jornal de Letras, 15 de novembro de 2023, na coluna "Fiquei a pensar", onde JLP escreve sobre as suas leituras.)
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