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Faltam-me palavras para explicar a maneira como a lonjura cabe inteira no meu olhar. Possuo longos braços invisíveis. Esta distância amplia-me. Num instante, conheço as brisas desde sempre, temos a mesma idade, tocamo-nos com a mesma pele. Algo de mim sobrevoa estes telhados, ruas, praças, copas de árvores. Um sobressalto acerta-me no fôlego que, de repente, também é imenso. No topo do castelo, debaixo de arcadas góticas, inspiro toda a cidade de Leiria, sinto-a no interior dos pulmões, fresca a esta hora, e expiro-a, sopro-a de volta ao seu lugar justo.

 

Tenho o rabo gelado. Estou sentado num banco de pedra, condensação mineral das sombras de séculos. As vozes da minha mãe, admirada, e da minha irmã, explicativa, chegam-me das costas, embaraçam-se uma na outra. Não se estendem até lá a baixo, ficam aqui, presas às suas teimas, trazem-me de volta para aqui. O meu pai tem as mãos nos bolsos, olha para longe.

 

Entrámos no castelo de Leiria sem dúvidas. A altura das muralhas incentivou-nos, as plantas a crescerem nos interstícios das pedras também. A minha irmã era a primeira a subir os degraus, não sei o que a puxava. Eu seguia-a sob a gentileza das árvores e do céu. Este é um verão gentil, abrandou por nós, atenuou o seu ímpeto para nos permitir esta tarde. Os meus pais vinham atrás, sem pressa, a conversar. Pensei em quantos teriam subido aqueles degraus, sem conseguirem imaginar que repetiríamos os seus passos, agora com sapatilhas, agora com a máquina fotográfica que o meu pai prende com uma correia ao pulso. Estas pedras são feitas de muito tempo.

 

Procuro a carrinha na paisagem. Deixámo-la estacionada junto de um posto da polícia, ideia da minha mãe. Não a encontro. A minha irmã aponta para uma área, como se a própria cidade fosse um mapa aberto à nossa frente. O meu pai discorda, aponta para o centro, a praça principal, aponta para o rio Lis e, a partir dessas referências, calcula mais ou menos a localização da carrinha.

 

Anoiteceu. Estou sentado no banco da frente da carrinha, ouço uma rádio de Leiria, música americana. Lá atrás, já acabaram de montar a cama, colchões de espuma, e já estão todos deitados. O meu pai conversa com a minha irmã acerca dos caminhos da cidade, refere-se ao rio Lis. O meu pai não perde uma oportunidade de dizer esse nome, rio Lis, adora. A minha mãe chama-me. De cuecas e camisola de algodão, estou pronto para dormir. Abro as cortinas que dividem a carrinha e passo para trás.

 

Tenho de ter cuidado para não pisá-los. De um lado, o meu pai; ao meio, a minha mãe; do outro lado, a minha irmã. Deito-me aos seus pés, atravessado. Sou o único que cabe nessa posição. Entro no saco-cama. Quase a sussurrar, a minha mãe termina qualquer ideia e, a seguir, diz: vá, agora vamos dormir. Sinto-os a acomodarem-se e, depois, a repousarem a respiração. Há um instante que permanece. Abro os olhos para vê-lo. As cortinas das janelas estão fechadas, filtram a luz dos candeeiros públicos, transformam-na em penumbra. Passam carros lá fora, os seus faróis dançam no tecto da carrinha.

 

 

 

José Luís Peixoto, in revista UP (maio, 2017)

 

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