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Em outubro de 2017, José Luís Peixoto visitou a península da Coreia pela quinta vez. Escreveu as dez crónicas breves, que se apresentam em seguida e que foram transmitidas na RDP/Antena1. Na mesma rádio, apresentou uma reportagem da sua autoria, que pode ser ouvida AQUI.

 

1

No aeroporto de Pequim, faço o check in para Pyongyang pela quinta vez na minha vida. Os norte-coreanos que podem sair do país despacham malas que fazem apitar as máquinas e, por isso, têm de abri-las para inspeção.

 

No avião, vou sentado ao lado de um homem muito direito. No jornal Pyongyang Times, em inglês, leio as notícias da primeira página: a produção aumentou em diversos sectores da economia nacional. Há também um artigo com o título "Atos anti-República Popular Democrática da Coreia vão trazer mais vergonha e ruína para os Estados Unidos". Na notícia principal, no entanto, Kim Jong-un inspeciona uma quinta agrícola militar. Sorri na fotografia, com trigo até à cintura.

 

Quando as hospedeiras, com voz colocada e muito aguda, anunciam a aterragem, vêm-se campos lavrados e algumas casas rurais da mesma cor desse terreno.

 

Pela quinta vez na minha vida, cumpro as formalidades da alfândega da Coreia do Norte. Um militar pede telefones e passaportes. Na revista das malas, outro militar encontra dois livros na minha bagagem. Vão ser analisados. Sei o que não posso levar — livros sobre os Estados Unidos, a Coreia do Sul, bíblias, etc. — e, por isso, espero despreocupadamente num guichet que me devolvam um volume de poesia do Perú e um ensaio sobre literatura.

 

Encontro as guias que me acompanharão durante todos os momentos da minha estadia. São duas mulheres, uma da minha idade (43 anos) e outra muito mais nova (22). Conheço a primeira, viajei com ela pelo país em 2014.

 

Na berma da estrada entre o aeroporto e Pyongyang, há centenas de pessoas de todas as idades a pé ou de bicicleta. Chego à cidade, multidões enchem os passeios. Estes são os norte-coreanos que se imaginam no ocidente, que estão por baixo de muitas conversas, mas de que poucos falam em concreto. Durante a próxima semana, pela quinta vez na minha vida, voltarei a andar entre eles.

 

2

Às cinco da manhã em ponto, começa a ouvir-se uma música suave, algo fantasmagórica, em todos os altifalantes de Pyongyang. Da janela do meu quarto, vejo os vultos que, a essa hora, atravessam a escuridão total. O dia nascerá às seis e meia. À primeira luz, os passeios estão já cheios de gente: homens e mulheres a irem para os seus trabalhos, estudantes a caminharem enquanto leem cadernos que seguram diante do rosto, crianças pequenas (6 ou 7 anos) que vão sozinhas de mochila às costas, velhos que empurram carros com sacos de serapilheira, militares rasos a pé, oficiais de bicicleta.

 

A partir das oito da manhã, nas praças principais de Pyongyang, nos lugares onde passa mais gente, há formações de dezenas de mulheres que tocam tambor e fazem coreografias sincronizadas com bandeiras de vermelho muito vivo. Estão ali para dar ânimo aos trabalhadores que iniciam a sua jornada.

 

A neblina matinal levanta-se lentamente, há um sol de outono que ilumina as cores dos murais com episódios da vida dos líderes, que ilumina também os seus rostos no topo dos edifícios públicos. São sete horas e meia a mais do que em Portugal. Por decisão própria, a Coreia do Norte é o único país do mundo neste fuso horário. Assisto ao início de mais um dia em Pyongyang e sei que há outras realidades lá fora, mas aqui, para quem avança pelos passeios da capital da Coreia do Norte, só há esta realidade.

 

3

Em períodos entrecortados, enquanto esperamos, falo em inglês com a guia do Museu da Vitória na Guerra de Libertação da Pátria. É uma militar fardada, tem 26 anos. Sorri bastante, está com vontade de falar.

 

Pergunta-me se sou casado, se tenho filhos. Diz-me que é solteira, vive com os pais e com uma irmã. Pergunta-me a idade do Cristiano Ronaldo. A irmã é grande admiradora de futebol e encarregou-a de recolher essa informação. Os estrangeiros que por ali passaram nos últimos meses não foram capazes de responder. Acha-o demasiado velho, diz que a irmã vai ficar decepcionada.

 

A nossa conversa é interrompida pelas explicações que dá sobre as diferentes salas do museu, sobre a guerra da Coreia ou, como ela lhe chama, a guerra de libertação da pátria. É uma história de avanços e recuos, determinados pelas perversões cobardes dos imperialistas americanos e pelo heroísmo do povo e do exército da Coreia, sempre com a sábia direção do presidente Kim Il-sung.

 

Ao esperarmos outra vez, pergunto-lhe acerca da situação atual. Ri-se. Sabe que os americanos têm um presidente novo, mas diz que as suas ameaças não são novas. Os americanos são patéticos e ninguém tem medo deles.

Ao entramos na sala seguinte, a guia comove-se. Estamos na sala dedicada às atrocidades cometidas pelos americanos durante a guerra. Pergunto-me se sentirá a mesma comoção sempre que faz esta visita. Mas, volta a animar-se logo a seguir, ao entrarmos na sala da gloriosa vitória do povo coreano.

 

4

Qual será o futuro destas crianças de cinco ou seis anos? Esperam por nós alinhadas no pátio da escola primária da cooperativa agrícola. É de manhã, ouve-se um silêncio de pássaros no interior da neblina, ruídos da natureza e da terra a ser trabalhada. Quando nos aproximamos, a professora começa a tocar acordeão e, fazendo gestos sincronizados, vozes de criança cantam canções infantis sobre a grandeza da Coreia e dos líderes.

 

E os alunos da escola secundária Kang Pan-sok? Qual será o seu futuro? A escola tem o nome da mãe de Kim Il-sung e fica no centro de Pyongyang. Os alunos passam a sua adolescência nestes corredores. O rosto de alguns está muito sério nas fotografias do quadro de honra. A esta hora, há rapazes a jogar futebol, grupos de raparigas a conversarem. Em certos cantos, alguns estudam cadernos de páginas cinzentas. Talvez estejam a rever a matéria sobre a vida dos líderes. História das Atividades Revolucionárias de Kim Il-sung, ou de Kim Jong-il são disciplinas obrigatórias.

 

E também os meninos-prodígio do Palácio das Crianças. Milhares de jovens assistem a este espetáculo num grande teatro. No palco, meninas fazem bailados sobre o desenvolvimento tecnológico da Coreia do Norte, por exemplo. Um coro de rapazes, pioneiros de lenço vermelho, é acompanhado por palmas. Cantam à frente de um vídeo com mísseis a serem disparados e bombas a explodirem. Essa é a atuação mais aplaudida do espetáculo.

 

Qual será o seu futuro? Qual será o nosso futuro?

 

5

No paralelo 38, junto à linha onde se dividiu a península da Coreia, há sempre muitos pássaros. Cruzam a fronteira livremente, indiferentes ao que se pensa em terra.

 

Os militares sul-coreanos deixam o seu posto quando há a visita de turistas estrangeiros a partir do norte. Terão os seus motivos para fazê-lo.

 

Para além das cinco vezes em que estive no lado norte, também já visitei o paralelo 38 a partir do sul. Nesse lado, não deixam os visitantes aproximar-se da fronteira, repete-se que é muito perigoso. Todos acreditam e, assustados, ficam a centenas de metros, a ver por binóculos aquilo que tenho agora à minha frente.

 

Acompanho um militar e entro numa das salas azuis que se veem sempre na televisão, divididas pela fronteira, onde são feitas as conversas entre norte e sul. No interior dessa casa, azul também por dentro, ponho um pé de cada lado.

 

Na sua volta ao mundo, o paralelo 38 do hemisfério norte, também atravessa Portugal. Passa nos distritos de Beja e Setúbal.

 

À saída, dou um volume de cigarros ao militar, que fica surpreendido, apesar de o ter pedido a uma das guias que me acompanha e que me sussurrou: dê-lhe agora os cigarros.

 

Estou a 70 km de Seul mas, para chegar ao outro lado desta fronteira, terei de fazer 160 km por estrada até à capital da Coreia do Norte, apanhar lá um avião para a China e, daí, apanhar outro para a Coreia do Sul. Amanhã, farei essa viagem, durará todo o dia.

 

6

Nos últimos 65 anos, não são muitas as pessoas que sabem o que é, no mesmo dia, despertar de manhã na Coreia do Norte e adormecer à noite na Coreia do Sul.

 

O consumo de informação que sucede a chegada de internet ao telefone é um choque, dá-me uma sensação física. Sinto o sangue a correr mais depressa nas têmporas, uma ligeira tontura.

 

Depois, tudo é uma incrível novidade: as luzes, o trânsito, a publicidade e, sobretudo, as pessoas, convictas do seu mundo.

 

Caminho ao longo da praia Haeundae, em Busan — a segunda cidade da Coreia do Sul, com 3 milhões e meio de habitantes. Passo por artistas de rua com mais ou menos público, cantores de canções melancólicas acompanhadas à viola. Cruzo-me com famílias que também fazem este passeio ou que se sentam na areia, sobre cobertores. A esta hora da noite, a escuridão faz o mar ainda mais infinito. No entanto, sei que após três horas de ferry boat se chega a Osaka, no Japão.

 

Hoje, há um festival de fogo de artifício. Assisto a estas explosões coloridas. Em toda a praia, a multidão faz longas e colectivas exclamações de espanto. Na memória, nos olhos, levo ainda as imagens da Coreia do Norte, onde acordei hoje de manhã. Sei que eles estão lá, numa noite sem luz. Diante das formas que enchem este céu, parece-me que essa verdade é demasiado grande para ser dita. Vinte e quatro milhões de norte-coreanos — gente com famílias como estas, capazes de espanto como este. Aqui, é muito difícil explicar essa verdade simples.

 

7

Ainda em Busan, no sul da Coreia do Sul, olho pela janela do meu quarto enquanto ouço as notícias em inglês na televisão. Ontem, o secretário de defesa dos Estados Unidos visitou a fronteira. Ao seu lado, o ministro da defesa da Coreia do Sul declarou que, se a guerra começar, a artilharia da Coreia do Norte será destruída imediatamente.

 

Lá em baixo, nas ruas de Busan, as pessoas caminham pelos passeios. Dirigem-se talvez para lugares onde vão todos os dias.

 

Em estúdio, de fato e gravata, os comentadores dizem que a Coreia do Norte tem 21 batalhões estacionados no seu lado do paralelo 38 e que, mesmo que a artilharia fosse destruída, seria impossível deter a sua capacidade de retaliação (incluindo armas químicas, biológicas e nucleares) antes de alcançarem Seul.

 

O lugar que me calha no comboio de alta velocidade é ao lado de um militar sul-coreano. É um rapaz bastante alto, terá talvez pouco mais de vinte anos. Com a mão ,segura um copo de plástico com café gelado; com a outra mão, escreve mensagens no telemóvel. O seu uniforme tem um padrão camuflado, com a bandeira da Coreia do Sul no ombro. Ao peito, tem uma placa de pano, chama-se qualquer-coisa Kim.

 

Aproximamo-nos de Seul a cerca de 300 quilómetros por hora. A cada fôlego, estamos mais próximos de Seul. Ele chega ao fim do café gelado. Pousa o telemóvel por instantes, tira a tampa do copo de plástico e começa a mastigar as pedras de gelo.

 

8

Chama-se Chui. Não tenho a certeza de que o seu nome se pronuncie assim. Talvez por se ter cansado de ouvir o seu nome mal pronunciado, adoptou o nome de Glória para falar com estrangeiros. Diz-me que a relação com a Coreia do Norte, depende das gerações.

 

A avó conheceu a península antes da guerra e da divisão. Esse era um assunto que lhe custava muito. A mãe herdou essa dor, mas já um pouco atenuada. A ela própria, por várias vias, foi-lhe transmitida uma imagem muito negativa da Coreia do Norte: os inimigos. Já a filha, de nove anos, aprende na escola atual lições sobre toda a península da Coreia, traz trabalhos de casa sobre o norte e até lhe ensina algumas coisas.

 

Peço para traduzir o texto de alguns cartazes que fotografei com o telemóvel na Coreia do Norte. Um deles tem o desenho de muitos mísseis e diz: "A resposta de Choson" (que é o nome que a Coreia do Norte dá a si própria). Outro, também com mísseis, diz: "Não seremos derrotados, somos uma potência nuclear". Chui/Glória ri ligeiramente ao ler estas frases.

 

Pergunto-lhe se não tem medo. Continua divertida ao responder que há trinta e cinco mil soldados americanos na Coreia do Sul e que, por isso, não tem medo de nada.

 

Relembro-lhe aquilo que sabe melhor do que eu, que Seul está tão perto da fronteira e volto a perguntar-lhe se não tem medo. Volta a responder-me que há trinta e cinco mil soldados americanos na Coreia do Sul e que, por isso, não tem medo de nada.

 

9

A embaixada dos Estados Unidos fica na avenida mais emblemática de Seul, a poucos metros do palácio Geongbokgung, o principal do país, o palácio real. Às sete da manhã, os manifestantes permanentes estão na posição de lótus, sentados sobre esteiras. Têm os olhos fechados, fazem meditação antes de iniciar o dia.

 

Os polícias estão no seus postos habituais, são dezenas diante da entrada, estão a poucos metros uns dos outros, cobrem o muro com os seus casacos de amarelo fluorescente. Na rua lateral, há meia dúzia de autocarros da polícia estacionados.

 

À medida que os manifestantes despertam da sua meditação, vão-se juntando em grupos que conversam quase em silêncio. Enchem chávenas de plástico com termos de chá, libertam grossas nuvens de vapor. Sentindo a minha presença, há um que se aproxima e que me estende um panfleto e um sorriso.

 

Ele sabe que não entendo coreano, são poucos os estrangeiros que entendem, mas acredito que saiba também que entendo os desenhos do panfleto: de um lado, uma caricatura de Trump ao lado de Hitler; do outro, o rosto de Trump a ser espezinhado por vários sapatos, no centro de uma poça de sangue.

 

Aqueles que se opõem à presença americana no país são uma minoria, mas existem. Durante as grandes manifestações, são milhares. Aqui, têm fitas atadas à testa e cartazes, têm uma coreografia sincronizada com as palavras de ordem que repetem em coro. Quando Trump chegar, não poderão estar aqui, a poucos metros da embaixada dos Estados Unidos. Onde estarão nessa hora?

 

10

Rodeado pelos grandes arranha-céus de Seul, é difícil imaginar que Kaesong fica apenas a 70 quilómetros daqui.

 

A autoestrada mais importante da Coreia do Norte é a que liga Pyongyang a Kaesong e que, a cada x quilómetros, tem longas colunas de cimento que se destinam a ser derrubadas com explosivos e a cortarem a estrada, no caso de entrarem invasores no país.

 

No centro de Seul, o trânsito está quase sempre engarrafado por carros de fabrico coreano, topos de gama de marcas que conhecemos em todo o mundo e outras apenas disponíveis no mercado sul-coreano. As ruas principais de Kaesong são muito largas para as bicicletas que as atravessam. Às vezes, passa um carro também.

 

No ponto mais alto de Kaesong, junto às enormes estátuas de Kim Il-sung e de Kim Jong-il, escutam-se cães a ladrar, pedaços de vozes perdidos na distância e um grande silêncio que atravessa a neblina.

 

Na Torre de Seul, o ponto mais alto da cidade, vê-se uma capital a perder de vista, a tocar o horizonte, uma máquina complicada de relações entre dez milhões de pessoas.

 

Entre Seul e Kaesong, não há apenas a distância de 70 quilómetros. Há uma distância muito maior, uma lonjura no tempo, naquilo que as pessoas são capazes de imaginar e de entender.

 

Amanhã, vou regressar ao meu país, a milhares de quilómetros daqui. Sem motivo, mas muito a propósito, lembro-me de um balão que vi no templo Bulguksa, em Gyeongju. Entre centenas de outros, com etiquetas onde se escrevem pedidos, havia um assinado por uma família francesa. Apenas tinha a palavra "paz".

 

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(Algumas edições de Dentro do Segredo)








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