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São um arquipélago celeste. Estas nuvens pertencem aos Açores como as lagoas, como os serrados, como a pronúncia de São Miguel. Talvez tenham nascido dos vapores das furnas, água que ferve na terra com o propósito de subir ao céu e, lá do alto, observar as nove ilhas, perfiladas na distância. Se assim for, é também certo que, tarde ou cedo, essa água não aguenta a falta que esta terra lhe faz e, num momento, irá lançar-se em gotas e oferecer-se no corpo do pasto, verde, verde.
São como as manchas no pelo das vacas leiteiras. Quem desenhou estas nuvens? Foram, com muita probabilidade, as mesmas mãos que traçaram as manchas no pelo das vacas, donas de tempo sem fim, animais de olhos doces, a transbordarem compreensão. É também possível que as nuvens sejam um relevo invertido das ilhas. Todos os dias diferentes, a darem forma a algo que, de outro modo seria completamente invisível, mas não menos real.
Talvez estas nuvens sejam os pensamentos dos açorianos. Nesse caso, o que esperam do futuro, amanhã, ou o que recordam do passado, ontem, fica esculpido nesses grandes corpos suspensos, e ora avança num lento êxodo que enche o céu, ora se mantém inerte, sem a ilusão do movimento. Há pensamentos de muitas ordens e, da mesma maneira, há nuvens com muitos feitios, rendilhadas com o melindre dos sentimentos complexos.
Quem pode assegurar com certeza total que estas nuvens não são as preocupações, ou o amor, ou o medo, ou a esperança dos açorianos? A ciência, por mais comprovada, não trata deste tipo de questões. Da poesia sabe a poesia.
Talvez estas nuvens sejam as lembranças daqueles açorianos que tiveram de partir. Nas terras onde estão, lembram-se da sua ilha, chão de pedras negras, vozes que ainda os chamam, a torre da igreja, o mar, e essas lembranças transformam-se em nuvens sobre estas ilhas, sobre este oceano. Ficam estas nuvens a vigiar as ilhas, materializam o cuidado que, desde lá, enviam nesta direção. Então, estas nuvens são olhos.
São os nossos olhos que passam demasiadas vezes pela beleza sem a reconhecer. Habituámo-nos a estas nuvens quando devíamos, todos os dias, procurar o céu na expectativa e no deslumbramento. Não há beleza que seja capaz de vencer esse desinteresse.
Estas nuvens, brancas de encontro à claridade, ou negras em dias entregues ao inverno, são nossas, fazem parte de nós e, ao mesmo tempo, existem na paisagem, lá longe, onde os nossos braços esticados não chegam. Essa é sempre a natureza daquilo que somos capazes de ver. Existe fora de nós e, pelo olhar, somos capazes trazê-la para o nosso interior. É aí, em nós, que se decide o peso destas nuvens: pesadas como basalto ou leves, em flutuação, sem peso.
Sim, estas nuvens são um arquipélago celeste, habitado por algo que precisa de atenção e consciência para existir, precisa de alma, espírito ou silêncio, respiração ou mistério, matéria secreta, tão nossa como o nosso nome, tão concreta como estarmos aqui, completamente invisível, mas não menos real.
José Luís Peixoto, in Azorean Spirit, revista de bordo da Sata, edição de junho, julho, agosto 2015
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