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Ontem, perdi a carteira com todos os meus cartões e documentos.
Quero pedir-vos desculpas antecipadas por ter de voltar a escrever sobre a morte. Não é por mal. Não é porque queira perturbar-vos. Às vezes, perguntam-me se não tenho outro tema e chego a pensar que não. Perguntam-me se não me canso. Eu canso-me. Antes do verão, uma senhora disse-me: um escritor vê beleza nos lugares mais difíceis. Eu sorri, cobri a sua frase com silêncio e pensei: não é verdade.
Nesta semana que passou, na terça-feira, sentei-me no sofá da casa da minha irmã e estive a ver filmagens antigas. Metade das conversas eram: estás a filmar?, não me filmes, ela está a filmar?, não está a filmar, pois não? Depois, havia minutos longos em que esqueciam a máquina ligada e filmavam o chão: as pedras da rua, os passos mais lentos ou mais rápidos, a respiração. Está a filmar? Isto está a filmar? Havia partes em que estávamos todos juntos, todos mais novos. Entre nós, a falar connosco, a rir connosco, estavam os nossos mortos. A minha sobrinha, que agora se deprime e usa soutiens, era um bebé ao colo de um dos nossos mortos. Eu era um adolescente despenteado e desagradável, com um pulôver de lã. A minha mãe raramente se sentava. Como nós, os nossos mortos perguntavam: ela não está a filmar, pois não? E ouvia-se a voz da minha irmã, atrás da máquina, a dizer: olhe para aqui, diga lá qualquer coisa.
Cada vez que participo num programa de televisão em direto, tenho vontade de me levantar e de, a completo despropósito, dar uma estalada no apresentador. Não tenho nenhuma espécie de aversão para com qualquer apresentador. Pelo contrário. Normalmente, são pessoas que sabem fazer muito mais expressões faciais do que aquelas que mostram. A corrente que me puxa é a curiosidade acerca daquilo que aconteceria depois. Fazem-me perguntas: quando começou a escrever?, porque escreve?, quais são os autores que mais o influenciaram? Eu respondo devagar, e, por detrás de cada palavra, sinto vontade de levantar-me, ter a completa percepção de todos os meus movimentos e dar-lhes uma estalada.
Houve um dia desta semana em que perguntei aos nossos mortos se podia ser insensato. Eles disseram logo que sim.
No domingo, quando já começava a anoitecer, passei por uma criança que estava à espera, sozinha, dentro de um carro. Era um rapaz de seis ou sete anos. Estava sentado, muito direito, no banco de trás, e brincava com os dedos. Temo não ser capaz de explicar a opressão que senti no peito. Num instante, fui levado para um passado de há trinta anos atrás. Lembrei-me de ser aquele exacto menino e de não saber se os meus pais voltavam. Posso ir também? Não, espera aí. Por favor, posso ir também? Não, espera aí. O tempo passa de maneira diferente para as crianças. Cinco minutos é muito tempo, dez minutos é muito tempo, meia hora nunca mais acaba. Eu olhei para esse rapaz de seis ou sete anos, mas creio que ele não me viu. Melhor assim. Eu não iria querer um estranho a olhar para mim enquanto me doía o medo de ficar sozinho para sempre.
Perguntei aos nossos mortos se podia chorar. Eles disseram que sim, podia chorar o quanto quisesse.
Chorei dentro do carro com seis ou sete anos e chorei fora do carro, trinta e quatro anos, atrás de uma árvore, ridiculamente, a fingir que atava um sapato.
Quero pedir-vos desculpa por ter chorado.
Nestes últimos dias, nesta semana, no supermercado e noutros lugares bem iluminados, tem-me acontecido estar a conversar com a minha mãe ou com a minha sobrinha e, de repente, reparo que estou a falar para uma pessoa qualquer que não conheço e que olha para mim muito admirada. A minha mãe ou a minha sobrinha ficaram lá atrás a ver qualquer coisa e eu fico muito envergonhado por estar a demonstrar tanta familiaridade para uma desconhecida que só de modo remoto poderia ser confundida com a minha mãe ou com a minha sobrinha. Uma vez, só reparei nesse engano quando já ia começar a zangar-me por não me responder. Noutra vez, só reparei quando já estava a abanar-lhe o braço para que visse algum objecto que me parecia importante e que, agora, já não me consigo lembrar do que era.
Durante esta semana, várias vezes, também perguntei aos nossos mortos se podia fechar os olhos. Eles disseram que sim, claro que sim. E pediram para não lhes fazer mais perguntas, disseram que a resposta será sempre sim.
José Luís Peixoto, in Abraço, Quetzal.
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