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O mundo é multidimensional. O que quero dizer é: a consciência do mundo é multidimensional. Identificar as dimensões pertinentes de um assunto é, com frequência, a primeira grande tarefa de interpretação a cumprir. As dimensões possíveis de análise são infinitas, mas quais as que mais relevantes à luz do que se pretende alcançar? Seja qual for a conclusão a que se chegue, a multiplicidade de dimensões pressupõe hibridismo. A existência do que consideramos manifesta-se de uma forma, mas também de outra, e de outra, e de outra. A articulação entre essas diferentes perspetivas exige que se abandone uma linha narrativa sequencial, de sentido único, exige a articulação e, por isso, exige o contraponto, a mistura.
Até num texto curto como este Calais, Emmanuel Carrère não nos poupa à complexidade do mundo que nos rodeia. Seria mais apaziguador se a vida fosse uma história que pudéssemos contar sem anacronismos, a partir de uma única perspetiva, seguindo um único género literário, avançando entre linhas bem definidas, mas estaríamos a simplificá-la, a distorcê-la. Ironicamente, os mecanismos que, no momento da leitura, parecem afastar-nos de uma verdade que nos puxa, são aqueles que nos aproximam de uma outra verdade, menos óbvia, não menos verdadeira. Muitas vezes, esses “mecanismos” são metaliterários, recordam-nos que estamos a ler um livro quando, na verdade, preferíamos submergir-nos na suspensão de descrença.
O trabalho de Carrère equilibra-se entre essas duas verdades, entre inúmeras dimensões. Neste caso, em janeiro de 2016, propôs-se a uma estadia de duas semanas em Calais e, a partir daí, a escrever um retrato da cidade, não se detendo apenas no acampamento de migrantes e refugiados que marcava a vida de Calais nesse período. A presença desses milhares de pessoas que tentavam atravessar o Canal da Mancha trouxe o nome de Calais para a imprensa internacional. Essa circunstância sobrepôs-se a todos os outros aspetos da sua identidade. Carrère foi lá em busca dessas múltiplas faces.
Ao fazê-lo, expõe dilemas e incongruências da forma como o mundo lida com o tema das migrações. Os habitantes de Calais dividem-se entre os que apoiam e os que condenam os migrantes. Carrère escuta ambos os lados, dá-lhes voz e mostra como coexistem na cidade. Esta é uma literatura que procura a humanidade em toda a parte, que não rejeita realidade. Quanto a esse ponto, este é um livro que pergunta: o que é a França hoje em dia? O que é a Europa hoje em dia?
Isto, que não seria pouco, é apresentado num texto que avança ora na via da literatura, ora na via do jornalismo, sem complexos e que, assim, implicitamente, ridiculariza esses mesmos complexos, essa soberba. Logo no segundo capítulo, o autor/narrador recebe uma carta, assinada com pseudónimo, que põe em causa a sua presença, a legitimidade e o valor do trabalho que poderá realizar. Independentemente do caráter documental ou ficcional dessas cartas, que surgem como um diálogo ao longo de todo o texto, essa é a materialização da consciência necessária, da dúvida necessária que sempre acompanha um grande autor.
(Texto de José Luís Peixoto)
Calais, Emmanuel Carrère, tradução para castelhano de Laura Salas, Editorial Anagrama, 2017
(Publicado no Jornal de Letras, 13 de dezembro de 2023, na coluna "Fiquei a pensar", onde JLP escreve sobre as suas leituras.)
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