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O Monte Kumgang, na Coreia do Norte, é um lugar que existe. Estar lá é uma experiência tão concreta como estar aqui. Lá, também é possível olhar em volta. A natureza impressiona, as árvores, os cursos de água, as cascatas, o oxigénio é tão limpo e fresco que chega a doer nos pulmões.

 

Os encontros entre famílias separadas pela guerra da Coreia têm lugar num hotel que fica no sopé do Monte Kumgang. Também esse hotel, com a sua enorme recepção, com os seus quartos de lençóis bem passados a ferro, é um lugar que existe. As alcatifas cheiram a detergente pobre, sem perfume.

 

Os familiares da Coreia do Sul chegam de autocarro, o monte e o hotel ficam a poucos quilómetros da fronteira que atravessa a península. Foi num desses autocarros que chegou a senhora Han Shin-Ja, fazia parte das 89 pessoas que vieram para a reunião de agosto de 2018.

 

A senhora Han Shin-Ja tem 99 anos. Durante a guerra da Coreia, viajou para sul, deixando as filhas a norte. Essa separação era para ser temporária mas, de repente, as fronteiras foram fechadas e não voltou a ter possibilidade de vê-las. Essas crianças têm hoje 71 e 72 anos.

 

Como se passam mais de 65 anos assim? Como se passa uma vida assim? Os anos, as estações, as datas que se repetem, e essa separação intransponível, esse silêncio absoluto, espécie de morte.

 

A estadia das famílias no Monte Kumgang durou 3 dias. Ao longo desse período, somados, os encontros efetivos corresponderam a um total de 11 horas. E como se passa essas horas? Cada palavra representa mil vezes todas as palavras que foram pensadas, cada olhar e cada toque representam mil vezes aquilo que se imaginou.

 

No ano 2000, realizou-se a primeira reunião entre famílias coreanas separadas pela guerra. Desde então, houve apenas 22 oportunidades de realizar esses encontros, com algumas dezenas de participantes de cada vez. A primeira lista de sul-coreanos que desejavam rever os seus familiares continha mais de 130 mil nomes. Desses, apenas 57 mil continuam vivos.

 

A senhora Han Shin-Ja é uma pessoa que existe, as suas filhas também. Enquanto estamos aqui, ela estará em algum lugar da Coreia do Sul, talvez a recordar detalhes das 11 horas que passou com as suas filhas septuagenárias.

 

Quando o autocarro começou a afastar-se, chorava quem ficava e quem partia. Entre os norte-coreanos mais novos, houve quem corresse pela estrada em busca de mais alguns segundos: a imagem daqueles que partiam por mais alguns segundos. Qual o valor desse tempo?

 

Como há bastantes famílias separadas e poucas oportunidades, não se repetem visitantes. Por isso, é quase certo que a senhora Han Shin-Ja nunca mais voltará a ver as suas filhas.

 

Se quiserem saber todos os segredos acerca da passagem do tempo, perguntem à senhora Han Shin-Ja. Entre o que ela sabe, há muito que nunca conseguiremos entender.

 

José Luís Peixoto, in Espiral do Tempo (setembro, 2018)

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