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Como é afirmado num dos textos introdutórios deste livro, há geometria em tudo. Quando as formas geométricas são menos óbvias, devido à complexidade intrincada dos objetos, não quer dizer que sejam inexistentes. Citando Saramago, “o caos é uma ordem por decifrar”. Seguindo pelo caminho desse raciocínio, a partir da proposta destas páginas, onde há geometria há arquitetura, mesmo que em itálico ou entre aspas.
Este livro apresenta cinco pares de edifícios em contraponto, “Duo”. Cada detalhe que os aproxima e afasta projeta um terceiro edifício, abstrato e concreto, subjetivo e objetivo, paradoxal e inequívoco, invisível. Ao mesmo tempo, essa constante analogia salienta as características de cada obra, dá-lhes proporção e contexto, um pouco como acontece na literatura comparada. Talvez esta referência me tenha surgido a partir da grande quantidade de menções literárias. “E o poema faz-se com o tempo e a carne”, refere o autor na sua breve apresentação, utilizando um verso de Herberto Helder. Aqui, claramente, o poema é cada uma destas casas. Têm nomes como títulos, estruturantes também eles.
Através de desenhos, fotografias e plantas somos conduzidos à linguagem da arquitetura. O início é uma forma elementar, que pode ser apenas uma linha. Essa é a ideia primordial, a síntese. Logo a seguir, página a página, essas formas vão-se desenvolvendo, tornando-se cada vez mais complexas, exibindo as suas inúmeras dimensões. Então, sem que sejamos obrigados a ver, sentimos que somos nós próprios que descobrimos que há geometria também nas sombras. Os reflexos nos vidros falam-nos de simetria e de assimetria. Há intenções humanas e natureza transcendente nos detalhes da luz.
Por falar em gente e natureza, é percetível que as pessoas que ocupam o espaço transformam-no radicalmente, basta a sua presença para produzir esse efeito. A partir de páginas impressas, imaginamos a forma como os seus sentidos processam os diferentes estímulos proporcionados pelo ponto específico onde estão, imaginamo-nos no lugar dessas pessoas. Por sua vez, as plantas propõem uma geometria aleatória, impossível de ser domada pela intenção do criador, uma pitada de humildade perante alguma coisa imensa. O arquiteto projeta em relação com o que existe, mas será engolido pelo que existirá.
Esse aspeto é muito claro nas fotografias que mostram estas casas a partir do exterior, no modo como pertencem à paisagem. Também esse é um contraponto, também esse é um “duo”: construção e natureza. As fronteiras existem, mas podem ser questionadas. O céu, o mar e a cidade são tocados pela obra do arquiteto e, por isso, de certa forma são obra sua, pertencem ao que concebeu. O contrário tem a mesma verdade: a obra do arquiteto é afetada pelo céu, pelo mar e pela cidade, uma parte do seu caráter é definido por mãos alheias.
Esse aspeto é um dos contributos para que, ao levantarmos a atenção deste livro, encontremos geometria e arquitetura em tudo. Os materiais são adjetivos, as cores também, as formas são substantivos e, às vezes, são verbos, são gestos. Há geometria nos sons, no vento, nos pensamentos. O principal arquiteto é aquele que identifica e lê a arquitetura.
Duo, Mário Martins, Uzina Books, 2022
(Publicado no Jornal de Letras, em janeiro de 2024, na coluna "Fiquei a pensar", onde JLP escreve sobre as suas leituras.)
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