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A nostalgia nasce da consciência súbita de que o passado está perdido. Avistando-o desde o presente, temos a tendência para lhe perdoar defeitos, limamos-lhe arestas, o que acentua ainda mais a pena de estar irreversivelmente perdido. Essa é uma reação humana, todos estamos sujeitos a ela. Incrível é quando desenvolvemos esse sentimento por um tempo que nem sequer vivemos. É justamente isso que acontece neste Sempre Paris, de Rosa Freire d’Aguiar.
“Teremos sempre Paris”, diz Humphrey Bogart a Ingrid Bergman, ela com os olhos marejados de lágrimas. Essa primeira pessoa do plural também nos inclui, não só porque todos já tivemos despedidas para sempre, fins de algo que temos de deixar partir, que nunca mais regressará, mas porque, realmente, todos teremos sempre Paris, essa cidade que em algum momento idealizámos. Mesmo que nunca tenhamos passeado nas margens do Sena, se vimos filmes, se lemos livros, se ouvimos música, Paris é um nome cheio de significado.
Rosa Freire d’Aguiar é hoje uma das mais notáveis tradutoras brasileiras. Em Busca do Tempo Perdido e Viagem ao Fim da Noite são dois exemplos arrebatadores do seu currículo. Nestas páginas, recorda o tempo que passou em Paris como jornalista, correspondente de várias publicações brasileiras. O período em causa inicia-se no dia em que aterrou em Orly, no ano de 1973, dura até ao início da década de noventa. São cerca de vinte anos de uma Paris de cafés, de livrarias, dos grandes debates de ideias, vistos por um olhar que estabelece contrapontos com a sua perspetiva brasileira e, também, com o presente.
Narrado na primeira pessoa, através de uma linguagem clara, este é um texto da memória. Os detalhes que nos são descritos somam-se às referências que possuímos e, aos poucos, vamos entrando nesta Paris, quase como se fosse uma memória nossa. Os contrastes com o presente são notórios, não só porque a autora chama a atenção para eles, mas também porque saltam à vista: o telefone como um objeto raro, o fumo dos cigarros em todos os lugares e circunstâncias, a possibilidade de se viver com um vencimento modesto em zonas de Paris que, no atual mercado imobiliário, são praticamente interditas. Este é a cidade que associamos ao início da Paris Review, sobrepovoada de nomes enormes da literatura, mas é também a cidade das personagens de Rayuela (O Jogo do Mundo, em português), de Julio Cortázar, com muitos jovens intelectuais, observadores e aspirantes.
Cortázar é, aliás, uma das figuras de grande relevo da segunda parte deste livro. A crónica da experiência da capital francesa nas décadas de setenta e oitenta constitui o primeiro terço de Paris Sempre. As restantes páginas são preenchidas por valiosas entrevistas que a autora conduziu com grandes figuras da cena literária parisiense desse período. Para além do já referido Cortázar, outros exemplos possíveis dessa longa lista são: Ionesco, Simenon, Sabato, Barthes, Simone Veil, etc.
Também esta invulgar forma é interessante e reveladora. Não é comum encontrar-se um livro constituído por uma longa crónica e por dezenas de entrevistas. Ainda assim, faz absoluto sentido que assim seja. A crónica contextualiza as entrevistas, cria o ambiente necessário. Depois, as entrevistas aprofundam muito do que foi sugerido. Paris Sempre é uma obra livre, bela e generosa.
(Texto de José Luís Peixoto)
Paris Sempre: Crônica de uma cidade, seus escritores e artistas, Rosa Freire d’Aguiar, Companhia das Letras (Brasil), 2023
(Publicado originalmente no Jornal de Letras, em março de 2024, na coluna "Fiquei a pensar".)
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