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Com longa entrevista feita por Carlos Vaz Marques e com crítica a "Livro" por Luís Carmelo.
Reportagem do jornal Público (Ípsilon), 1 de Outubro de 2010.
Por Isabel Coutinho
Em "Livro" José Luís Peixoto conta uma história que não viveu, mas que os seus pais viveram: a da emigração para França nos anos 60. O escritor foi às Galveias, terra onde nasceu, lançar o seu novo romance.
O salão da Sociedade Filarmónica Galveense, onde José Luís Peixoto costumava ensaiar com a banda, até parecia pequeno, cheio de gente e de fotografias antigas nas paredes. Na primeira fila, atenta, a mãe do escritor - D. Alzira, que ainda vive nas Galveias, perto de Ponte de Sor, Alentejo. A vila que saltou para os seus livros e que está presente mais uma vez neste, "Livro", novo romance. Os amigos de infância, os que andaram com ele na escola, os só conhecidos, os conhecidos dos conhecidos, todos foram, segunda-feira à noite, à sessão de lançamento pedir um autógrafo ao escritor que deu as Galveias a conhecer ao mundo.
Aos 36 anos, José Luís Peixoto, "um dos emblemas de Portugal lá fora", como diz o seu editor Francisco José Viegas, volta a ser criança, a espreitar por uma ladeira da terra onde nasceu: "Ali era a casa da minha avó". Mais à frente, aponta para a inscrição em cima da porta da Igreja da Misericórdia de Galveias, "Misericordia tua magna est super me". Lembra que esta é a epígrafe de "Uma casa na escuridão", um dos seus romances.
"Independentemente de José Luís Peixoto ser um dos autores portugueses mais traduzidos no mundo, nunca esqueceu a sua raiz e permanece ligado às Galveias", continua Viegas, recordando que o jornal francês "Le Figaro", escreveu que o autor eleva até alturas grandiosas a literatura do seu país.
A vida de uma vila
Naquela noite Zé Luís, como todos o tratam, começou a autografar e não conseguiu parar. Cada autógrafo é personalizado e longo. Só assina depois de conversar com quem lhe estende o livro e lhe diz: "É para mim".
As Galveias são o seu lugar, são o centro do seu mundo. É inquestionável. Em "Livro" não chama "Galveias" ao lugar onde as personagens vivem apesar de ser o seu romance mais ligado àquela terra. "Não era preciso. Quem o ler - aqui nas Galveias - não tem dúvida do lugar onde se passa. Começa com um episódio na fonte que é, ao detalhe, a das Galveias." Enquanto nos romances anteriores o que estava mais em evidência era "a natureza, a terra", a vila era "mais o monte e os campos"; neste, está a vida da vila: "com as alegrias, as tristezas, os aspectos mais engraçados, os aspectos mais mauzinhos que existem na vida desta vila e de outras".
"Começa na fonte, passa pelo terreiro, anda por todas as ruas das Galveias", explica. "Em 'Nenhum Olhar' dei nomes bíblicos às personagens. Neste, todos os nomes são de pessoas das Galveias. Foram escolhidos por serem nomes bonitos que infelizmente estão em desuso. Ilídio, Adelaide, Galopim, Cosme, Josué, D. Milú. Nomes que fui buscar à minha memória. Aqui e ali também há histórias de pessoas que fazem parte da nossa história."
O romance também fala de um aspecto que diz muito às Galveias: a emigração para França nos anos 60. Embora no Alentejo a emigração tenha sido mais para outros países, o escritor tinha o exemplo dos pais que emigraram para França e viveram no lugar onde vive o Cosme, uma das personagens: Lagny-sur-Marne (uma das suas irmãs nasceu lá e outra foi muito pequenina).
Zé Luís, que nasceu em Setembro de 1974, um ano e meio depois de os seus pais voltarem de França, tinha "essa mitologia", "essa história", desse lugar onde nunca tinha ido mas de que ouvia sempre falar como sendo algo "completamente diferente" da vida que encontrava no Alentejo.
Quando regressou a Galveias, o pai, que era carpinteiro, edificou a casa da família numa parte da vila que estava a ser construída por outros emigrantes. Uma irmã da mãe estava emigrada em Inglaterra e "havia essa coisa de chegarem sempre a Galveias com coisas que não conhecíamos, brinquedos, jogos electrónicos, chocolates... Eu sentia muito o peso da importância de ser uma história que pertence a muitas pessoas e que são muito ciosas da sua história. E quem sou eu para estar a conseguir dizê-lo?"
Era esse o desafio.
"É uma história que já se ouviu muitas vezes. Existe até um estereótipo, que em termos de enredo acaba por ser pouco interessante na medida em que toda a gente a conhece de alguma forma. Não a vivi pessoalmente, mas achava que seria um desafio grande contá-la e capturar essa intensidade."
Até agora, o seu método de trabalho tem sido sempre o mesmo: uma ideia inicial a que vai acrescentando outras. "Existe depois um período em que estabeleço uma série de pressupostos, uma série de 'regras' que vão ser pilares na construção daquele texto."
Para tentar capturar o que levou tantas pessoas a embarcar numa "aventura tão grande", para a qual é preciso "tanta coragem", como esta de ir viver para um país onde não se conhece a língua, e tem mentalidades e costumes diferentes, Peixoto imaginou muito o que seria chegar a França nos anos 60 ou, para tantos das Galveias, o que seria chegar a Inglaterra ou aos EUA nos anos 70. "Tal como imaginei sempre o que seria para a minha madrinha, que vivia ali no alto da Praça, entrar no hipermercado Continente. Porque eu sempre sabia que ela ficava impressionada com pequenas coisas que havia aqui nas mercearias...", emociona-se.
A questão dos pais, ou do pai em particular, tem estado sempre presente na sua obra. "Não consigo ficar indiferente", explica Peixoto, que viu o pai definhar com cancor e escreveu "Morreste-me". Em "Livro" a questão do pai e da filiação é muito importante e de certa forma é uma novidade: porque existem dúvidas acerca do pai.
"Eu próprio sou pai - o meu filho mais velho vai fazer 14 anos, o outro vai fazer seis anos. Perceber que para eles eu sou 'o pai', sou aquilo que o meu pai foi para mim... No entanto, sendo eu, tenho oportunidade de perceber o quanto me afasto da forma como via o meu pai. Sou uma pessoa imperfeita, cheia de aspectos prosaicos, não sou nada um ser mitológico. Isso retirou metáforas e possivelmente acrescentou uma série de novos elementos a este livro".
Neste romance Ilídio, uma das personagens, tem seis anos e vai percebendo que a mãe o deixou e nunca mais volta. "A minha forma de tentar dar vida às personagens é misturar-me com elas. Dar-lhes a minha vida.". Por isso uma das cenas mais forte deste romance resultou da experiência de estar próximo de crianas. "De certa maneira esse sentimento que é sugerido naquele primeiro capítulo acaba por estabelecer um sentimento de orfandade, de que estamos todos de certa forma entregues a nós próprios e temos de traçar o nosso caminho. O conforto que não tivemos não nos vai ser dado. Se não o tivemos naquele momento, não vale a pena passarmos a vida a tentar tê-lo por dívida antiga."
O enredo e o estilo
Peixoto, que se formou em Línguas e Literaturas Modernas e deu aulas de Inglês e recebeu o Prémio José Saramago em 2001, quis dar mais valor ao enredo neste romance, sobrepô-lo ao estilo.
No entanto, há uma particularidade. "Livro" tem uma primeira parte realista (até à página 204), a que depois é acrescentada uma segunda parte desconstrutivista. "De certa maneira, o livro escangalha-se", ri-se. "Antes de começar a escrever a primeira palavra eu já tinha a ideia de que no final ia existir algo de muito extravagante. Já tinha a ideia de tentar que aquele livro que é pousado nas mãos do filho, na primeira frase, que foi a primeira frase que escrevi, se transformasse no próprio livro que a pessoa tem nas mãos. Que existisse essa auto-referencialidade."
Colocou círculos à volta de palavras, fez brincadeiras à Raymond Queneau, coisas lúdicas à OuLiPo. "Achei que dava lógica ao que estava antes. Alguns aspectos que possam ser menos realistas na primeira parte, ficam relativizados por percebermos que aquela história não foi vivida na primeira pessoa: é uma súmula de informação que se foi recolhendo, contada por algumas das personagens, adquirida de de diversas maneiras."
Outra novidade é a linguagem.
Há uma família encostada a uma das paredes do salão onde decorre o lançamento, todas mulheres, várias gerações. Ao ouvi-las não há dúvida de que foi dali que veio este romance onde uma das personagens é "a filha do Pulguinhas Pequeno, a neta do Pulguinhas".
D. Antónia acaba de receber um autógrafo e Zé Luís diz-lhe a Pulguinhas do livro não é ninguém em especial. Dona Antónia tem orgulho em ser Pulguinhas, de nome. Nas Galveias existem muitos Pulguinhas e muitas Pulguinhas. "Deram-me uma picadela e dei estas Pulguinhas todas", diz a mulher mais velha e todas riem. D. Antónia ainda não leu o livro mas sabe bem daquela história: os seus filhos estão emigrados em Inglaterra. "Cá não há mprego, Portugal está mesmo um caos. Até tenho pena. De quê? De os nossos filhos estarem lá. Também o que vêm para cá fazer? Arrancar ervas?! A vida está difícil em toda a parte." Alguém puxa o "Livro" para si, "Dona Antónia, posso ver?" Lê alto.
O escritor, que começou a publicar nas páginas do "DN Jovem" e lançou o seu primeiro livro numa edição de autor, utiliza a linguagem do dia-a-dia no Alentejo ou típica dos que emigraram para França. "Tive de fazer algumas cedências porque havia palavras que ninguém conhecia, de outras não abdiquei", explica. "É impressionante, por exemplo, que o verbo 'amarguçar' não exista no dicionário. O adjectivo 'plancho' também não existe! Tive de colocar estas palavras num livro na esperança de que no futuro alguém as coloque no dicionário! Porque eu só do tempo em que nós 'amarguçávamos' quando íamos jogar aos 'esconderêros'. Eu pergunto às pessoas se elas sabem o que são os 'esonderêros', ninguém sabe. É incrível!", ri-se o escritor que deve à mãe "ter tido esta oportunidade de encontrar a vocação na escrita. A minha mãe é incansável nessa narrativa permanente e tem um vocabulário vastíssimo que em muita medida está presente neste romance e que tem por vezes corruptelas, como 'desentropeçar' que é desentorpecer. Ou em vez de polaco, 'polonés'. Foi uma marca do português tocado pelo francês que não resisti a colocar. Cá as personagens não conheciam a palavra polaco e aprenderam-na em França pela primeira vez como 'polonês'. Na segunda parte do romance, há uma grande concentração de palavras como as 'auto-rutas', os fogos 'ruges', as 'embutelhagens'. Se o 'cocktail dinatoire', o 'dress code' e o 'after-party' são aceites e até fazem parte de alguma coisa que é valorizada, por que se desprezam as 'vacanças' que têm uma origem semelhante? Porque é que um cocktail dinatoire é mais bonito do que um lanche ajantarado?"
Naquela segunda-feira, Zé Luís levou para a mãe. D. Alzira, o primeiro exemplar do livro. Ela sabe bem do que se trata. Foi para França aos 23 anos e aí ficou seis anos. Conversou muito com o filho enquanto ele estava a escrever. As pessoas das Galveias levam 'muito a peito' tudo o que ele coloca nos livros. "Não é uma realidade. Ele mistura pormenores com ficção. E as pessoas ficam a pensar que é verdade." Num texto escreveu que a mãe tinha ido ao médico ao hospital. Foi uma trabalheira para D. Alzira. Ninguém acreditava que não era verdade, que ela não estava doente. "Pensavam que eu estava a esconder o assunto", conta.
"Não sabia ler e já era doido por livros. Antes de entrar para a escola, tínhamos de lhe ler banda-desenhada e histórias. Dizia: 'Tomara que o rapaz cresça porque era uma canseira'", brinca. Sabe que pertencer ao mundo dos livros é a felicidade do filho que nasceu numa terra onde só havia a biblioteca itinerante. "Nasceu para isto." Que o faça "dentro do modo que sabe fazer", deixa-a muito feliz.
O périplo para o lançamento de "Livro" começou nas Galveias e Peixoto fará 40 apresentações em várias localidades do país, participa num festival em França e fará apresentações em Paris, uma delas na Sorbonne. Em Novembro vai ao Chile e, em Dezembro, a Inglaterra. O ano passado, esteve no Uruguai, Canadá, Roménia e Brasil.
"Livro" foi escrito em Lisboa e em cinco semanas de Nova Iorque, depois de ter regressado do lançamento de "Nenhum Olhar" na Índia, onde tinha estado 20 dias e de onde "vinha cheio de estímulos e de vontade de escrever".
A sua vida é isto: quase mais tempo fora de Portugal do que aqui, o que lhe atrasa a escrita.
Foi graças a Liz Calder, a editora inglesa que inventou a Feira Literária Internacional de Paraty, que "Nenhum Olhar" foi publicado na editora Bloomsbury, numa tradução feita por Richard Zenith. O "Financial Times" incluiu-o na lista dos melhores livros publicados em Inglaterra em 2007. Saiu depois nas EUA na editora de Nan A. Talese (a mulher de Gay Talese), do famoso grupo Random House. Prestes a sair em Inglaterra está "Cemitério de Pianos", traduzido por Daniel Hahn, tradutor de Saramago e de Agualusa. José Luís Peixoto é o único autor português representado pela agência literária Curtis Brown que representa também Margaret Atwood, William Boyd, John Le Carré, Richard Ford, David Lodge, etc. Quando regressa às Galveias, sabe que muito mudou. "A principal mudança nas Galveias sou eu. Já não sou a pessoa que andava lá a correr", diz, nunca esquecendo que só começou a escrever sobre as Galveias quando deixou de viver lá.
27/09, 21h - GALVEIAS - Salão da Sociedade Filarmónica Galveense
28/09, 18h30 - PORTO - Livraria Bertrand, Shopping Grand-Plaza
01/10, 14h - LISBOA - Livraria Bertrand, Amoreiras
01/10, 18h30 - FIGUEIRA DA FOZ - Casino da Figueira da Foz
02/10, 18h30 - AVEIRO - Livraria Bertrand do Forum Aveiro
02/10, 21h30 - PORTO - Livraria Bertrand, Dolce Vita Antas
03/10, 16h - LISBOA - Feira do Livro no CC Colombo
03/10, 21h30 - TORRES VEDRAS - Bertrand do Arena Shopping
04/10, 18h30 - CALDAS DA RAINHA - Bertrand do CC Vivaci Caldas
04/10, 21h30 - SANTARÉM - Centro Comercial W Shopping
05/10, 18h30 - COVILHÃ - Livraria Bertrand de Serra Shopping
05/10, 21h30 - CASTELO BRANCO - Liv Bertrand de Castelo Branco
06/10, 18h30 - GUARDA - Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço
06/10, 21h30 - VISEU - Livraria Bertrand do Palácio do Gelo
07/10, 18h - LISBOA - Tertúlia LER, Bertrand Chiado
18/10 - 14h - PARIS - Sorbonne La Nouvelle, Paris III
19/10, 18h30 - PARIS - Consulado Geral de Portugal
22/10, 18h30 - LISBOA - Livraria Bertrand do CC Vasco da Gama
22/10, 21h30 - CASCAIS - Livraria Bertrand do Cascais Shopping
23/10, 15h - MONTIJO - Livraria Bertrand do Forum Montijo
23/10, 17h30 - BARREIRO - Livraria Bertrand do Forum Barreiro
23/10, 19h00 - SEIXAL - Livraria Bertrand do CC Rio Sul
23/10, 21h30 - ALMADA - Livraria Bertrand do Forum Almada
24/10, 16h - ALCÁÇOVAS- Biblioteca de Alcáçovas
24/10, 18h - ÉVORA - Biblioteca de Évora
24/10, 21h30 - BEJA - Biblioteca de Beja
25/10, 15h30 - FARO - Forum Algarve
25/10, 18h30 - ALBUFEIRA - Livraria Bertrand do Algarve Shopping
25/10, 21h30 - PORTIMÃO - Biblioteca de Portimão
29/10, 21h30 - VIANA DO CASTELO - Biblioteca de Viana do Castelo
30/10, 15h30 - PORTO - Liv Bulhosa, Shopping Cidade do Porto
30/10, 18h30 - PORTO - Fnac, Norte Shopping
31/10, 15h30 - BRAGA - Livraria Bertrand do Braga Parque
1/11, 16h - GAIA - El Corte Inglés
01/11, 18h - GAIA - Fnac, Gaia Shopping
02/11, 21h30 - SÃO JOÃO DA MADEIRA - Bib de São João da Madeira
03/11, 10h - AVEIRO - Estabelecimento Prisional de Aveiro
04/11, 18h30- COIMBRA - Livraria Bertrand do CC Dolce Vita
04/11, 21h30 - LEIRIA - Book Lovers Day, Bertrand do Leiria Shopping
05/11, 18h - SINTRA - Quinta da Regaleira
(Para qualquer assunto relativo ao agendamento de actividades, é favor contactar Quetzal Editores. Muito obrigado.)
Por Pedro Dias de Almeida
José Luís Peixoto diz-nos, sentado na esplanada de um jardim lisboeta: "sei o peso que tem chamar Livro a um romance." Dentro do próprio... livro aborda-se esta questão: "Livro sugere perigosamente o livro, artigo definido que esta sucessão de páginas, por mais encadernada, nunca merece", ler-se-á, a páginas tantas. Mas o escritor não hesitou em aceitar essa missão que se impôs a si próprio. E este Livro é obra de uma enorme ambição.
Podemos dizer que o novo romance de José Luís Peixoto é sobre a vaga de emigração de portugueses para França nos anos 50/60 do século passado, mas não ficará tudo dito, longe disso.
"Um romance patriota"
O autor apanha-nos com a frase inicial - "A mãe pousou o livro nas mãos do filho" - e leva-nos pelas ruas, quelhas, fontes, becos e casas de uma vila - com geografia decalcada do mapa real das Galveias, reconhece o escritor que ali nasceu em setembro de 1974 - entre personagens com nomes como Ilídio, Adelaide, Josué, Cosme, Galopim, a velha Lubélia (pode o estilo de um escritor ser reconhecível até na escolha dos nomes para os seus personagens?).
Nessas andanças ainda não sabemos que o livro do título é muito mais do que "o livro nas mãos do filho" (mas esse episódio descansa o leitor, desde o primeiro momento, quanto à ousadia do título), ainda não sabemos que há mais livros dentro do livro.
Na primeira parte, que se estende por cerca de 200 páginas, é-nos apresentado um enredo bem urdido, uma narrativa clássica que nos suga lá para dentro, até estarmos às escuras, tropeçando pelos campos noturnos, ao lado de Ilídio e de Cosme, a caminho de uma França desconhecida, mítica, utópica; ou ao lado de Adelaide, exausta, em cima de um camião cheio de homens, cobertos por uma lona com cheiro "a borracha e a terra seca", a caminho dessa mesma França que só tinha a existência de sonho, sem imagens. Adelaide e Ilídio, um amor desencontrado, e nós a acompanhá-los, passo a passo, sem nada podermos fazer para os aproximar de novo. O Livro podia ser só esta primeira parte, assim, começando na vila e suas pequenas estórias, levando-nos com sacrifício para França, apresentando-nos, depois, as rotinas de Champigny e Saint-Denis, no momento em que Paris ganha estatuto de realidade espantosa para estas personagens. Podia ser só isto, e estava bem. Mas não.
Se, na primeira parte, há espaço para a descrição realista de uma matança de porco (José Luís Peixoto é o melhor dos jovens escritores portugueses a lidar com uma certa ruralidade) ou das sessões em que a população da vila se juntava na Casa do Povo para ouvir "telefonia", na segunda parte fala-se de Michel Houellebecq ou de Voyage au Bout de la Nuit, de Celine, fala-se de Sylvia Plath e cita-se Voltaire, em francês, sobre Shakespeare. Descobrimos, enfim, quem era o narrador que nos contava a história até esse momento. E a história, afinal, continua.
Sim, Livro é uma obra ambiciosa. "Não existia o romance que tratasse o tema da emigração portuguesa para França como eu achava que devia ser tratado", diz o escritor. "E, mal ou bem, era importante fazê-lo." O que torna este romance, centrado em acontecimentos do século passado, absolutamente contemporâneo, é sobretudo o lugar de onde se olha. José Luís Peixoto escolheu para protagonista (a tal personagem que, na segunda parte, se revela como narrador) alguém com quem se pudesse identificar, desde logo por uma questão geracional - ambos nasceram logo a seguir ao 25 de abril de 1974 - mas também, por exemplo, pelo interesse partilhado por literatura.
Uma das razões apontadas pelo escritor para a ausência de um romance como este, com esta temática, na literatura portuguesa, reside no facto de, nas famílias que atravessaram este processo, só a sua geração ter conquistado as ferramentas e as referências para o escrever. É com orgulho assumido que José Luís Peixoto recorda os seus avós que não sabiam ler nem escrever, ou os seus pais, que fizeram, como milhares de portugueses, esse percurso França-Portugal e "nunca imaginariam que o seu filho iria, um dia, ganhar a vida escrevendo livros."
"O protagonista do meu livro vai tentar saber de onde é que vem. Como ele, faço parte de uma geração que nasceu quase com uma orfandade de memória, crescemos a ouvir dizer que não vivemos a revolução, não vivemos a guerra colonial, não vivemos essa vaga de emigração..." José Luís Peixoto impressiona-se com as mudanças profundas que Portugal registou nas últimas décadas e talvez seja esse, afinal, o tema maior deste Livro - as investigações de António Barreto sobre essas mudanças foram, diz, uma fonte muito útil. Impressiona-o, sobremaneira, a passagem de um quadro de ruralidade para urbanidade, mesmo cosmopolitismo - passagem essa que ecoa na sua própria vida e que acontece, também, ao longo das 264 páginas deste romance. "Dizemos tantas vezes mal do nosso país, que, às vezes, esquecemos o sprint de Portugal nos últimos 40/50 anos - há uma diferença abissal nas condições de vida dos portugueses."
A vertente política é uma das novidades que o escritor reconhece ter acrescentado à sua obra anterior com este novo romance. Há um objectivo maior por detrás deste grande Livro? Há, mesmo que não tenha sido esse o farol que, desde o início, guiou os passos do escritor. José Luís Peixoto não hesita em falar de "heroicizar os portugueses, o povo português". Não hesita mesmo em dizê-lo com todas as letras: "É um romance patriota."
Leitor solitário
Por estes dias, José Luís Peixoto é uma das figuras da rentrée literária nacional. Uma posição que ocupa confortavelmente, mesmo sabendo que estes rituais podem ser tão efémeros como os foguetes lançados pelo barbeiro da vila. Na segunda parte, quando o tom muda, e encontramos o protagonista a dirigir-se a nós na primeira pessoa, podemos ler: "O título do último livro que terminei de ler foi Les Particules Élémentaires, de Michel Houellebecq. Já sei que é uma leitura tardia. Instalou-se a ideia de que romances destes têm de ser lidos na estação em que são publicados ou, pelo menos, nas semanas em que começam a ser defendidos por uns e arrasados por outros. (...) Acalento a imagem de leitor solitário, único leitor de páginas que as multidões já esqueceram." Este Livro, asseguramos nós, vai aguentar bem a passagem do tempo e pode ser lido, solitariamente, quando a rentrée de 2010 for só um conceito ultrapassado, absurdo e inútil.
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