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José Luís Peixoto apresenta livro de poesia Regresso a Casa

Poema de José Luís Peixoto in Regresso a Casa

(Publicado na revista Sábado na edição de 25 de março de 2023.)

 

O LEGADO IMATERIAL DE RUI NABEIRO

 

Houve um momento destes dias em que, sozinho, fui ouvir um pouco das conversas que tivemos, ainda estão nas gravações do meu telemóvel. Ao escutar a cadência da sua voz e, também, o espaço gravado que envolve esse som, foi como se, de repente, estivesse outra vez no escritório de Rui Nabeiro, como se estivéssemos ainda a conversar. Há um tempo que se mantém ali, suspenso.

 

Quase sempre, essas gravações começam a meio da conversa: “O que eu possa dizer não lhe adianta nada, o que eu possa apreciar adianta-me a mim.” Nesse momento, falávamos sobre o livro que eu estava a escrever sobre a sua vida. Com estas palavras, Rui Nabeiro estava a esquivar-se aos meus pedidos de opinião. Na altura, como agora, tenho a certeza de que teria aprendido bastante com essas considerações, mas também não tenho dúvidas de que aprendi com os seus silêncios ou, muitas vezes, com o que disse indiretamente.

 

Esse livro foi publicado em 2021. Trata-se de um romance biográfico, a que chamei Almoço de Domingo. Ou seja, esse romance foi escrito a partir das conversas que tive com Rui Nabeiro sobre a sua vida, assim como de mais algumas fontes. Desde então, em alguns momentos, cruzei-me com pessoas que demonstraram dificuldades em perceber o suposto hibridismo de um romance biográfico. No entanto, assim que expliquei a minha intenção a Rui Nabeiro, quando ainda não estava uma única palavra escrita, ele entendeu logo do que se tratava.

 

Após a publicação do livro, as suas opiniões acabaram por chegar, ouvi-as na rádio, li-as em declarações que deu à imprensa. Ao vivo, tive a sua humildade e o seu olhar a comunicar-me uma mensagem que creio ter entendido, mas que escapa às palavras. Muitas vezes, Rui Nabeiro era assim. Quando tínhamos a sorte de receber um daqueles sorrisos radiosos, não sabíamos encontrar palavras para exprimir o privilégio que nos tocava. Apesar de também existir um certo pudor, Rui Nabeiro era um homem que não tinha medo das emoções. Ao falar da mãe, dizia quase sempre “a minha mãezinha”. Ao falar do pai, demonstrava sempre a grande mágoa de o ter perdido tão cedo. Esse carinho era absoluto e muito claro em relação a todos os elementos da sua família, tanto os de agora, filhos, netos, bisnetos, como os de antes, pais, irmãs e irmão. No que toca à sua Alice, companheira de sete décadas, havia um amor luminoso, sempre presente, um amor tocante para todos os que tiveram oportunidade de o testemunhar, como me aconteceu a mim.

 

Acredito que, em grande medida, é devido à força de todo este afeto que Rui Nabeiro se distinguiu, que ganhou a consideração generalizada do povo e que pertence à memória de tantos. Foi um empresário excepcional, inovador, visionário, que construiu uma enorme marca a partir do zero, que dinamizou a economia de toda uma região. Nada disso é pouco e não deve ser minimizado, mas a grande raiz que segura esse tronco e esses ramos são os valores que preservou desde sempre, de que nunca abdicou.

 

Recordo o prazer que lhe dava contar alguns episódios acerca das ofertas que multinacionais fizeram pela sua empresa. Ria ao narrar a preocupação da sua Alice, que lhe perguntava: “se sabes de antemão que não vais aceitar, porque é que não lhes dizes logo?” Mas Rui Nabeiro sabia que não era assim tão simples, que tinha de deixá-los falar e, também, referiu várias vezes que tinha gosto em ouvir aqueles números tão altos e, ao mesmo tempo, lembrar-se dos baixos valores com que começou. Recordo igualmente o orgulho com que contava ousadias que teve e que fizeram muita diferença no seu percurso empresarial, como no caso da sua ida para Angola na década de setenta, num momento em que a grande maioria dos portugueses estava a abandonar o país, e de como aí conseguiu montar uma fábrica, formar trabalhadores e, assim, receber café angolano em Portugal.

 

A viagem que eu fazia em direção a Campo Maior era muito diferente da que fazia no regresso. Para lá, ia sempre na expectativa. Para cá, vinha sempre assoberbado com tudo o que tinha ouvido. Essas conversas eram como um caleidoscópio. Em março de 2020, fomos interrompidos pela pandemia. No espírito dessa época, tentámos conversar através da internet, Rui Nabeiro na sua casa, eu na minha, mas não funcionou. Faltava alma a essa comunicação e, nestas partilhas, a alma era tudo. Assim, quando pudemos, voltámos a encontrar-nos ao vivo, com os devidos cuidados.

 

Hoje, parece-me que a pandemia marcou bastante as conversas que tivemos. Rui Nabeiro sentia-se privado de uma liberdade que lhe era essencial e, também, sentia-se fragilizado. Esse foi um período de apreensão para os mais velhos, e Rui Nabeiro tinha acabado de cumprir 89 anos. Assim, talvez temesse um pouco por si próprio, mas principalmente temia pela sua Alice. Provavelmente, esse tempo potenciou os muitos momentos de emoção que partilhámos nesses encontros. Como aconteceu, por exemplo, ao falar da doença da irmã Clarisse, do esforço que colocou em levá-la a Londres, em proporcionar-lhe os melhores cuidados médicos possíveis na época, mas, mesmo assim, não conseguiu salvá-la.

 

Há pessoas que passaram dificuldades, que as superaram e que, depois, se envergonham da sua história, escondem esses episódios, como se nunca tivessem acontecido. Rui Nabeiro nunca fez parte dessas pessoas. Rui Nabeiro sabia que não podia separar a sua identidade da sua história. Era um homem que estimava a palavra escrita, sabia que existe um legado imaterial, e que as palavras são uma forma de tentar captá-lo. Talvez por isso, tenha tido tanta paciência comigo. Ainda bem que foi possível escrever Almoço de Domingo. Com alguma frequência, pediam a Rui Nabeiro que autografasse exemplares do livro que escrevi sobre ele. Sei que acedia sempre a esses pedidos, o que me enche de orgulho.

 

Tenho esperança que essas páginas consigam sugerir uma gota do que foi a vida de Rui Nabeiro, do muito que ainda é. Aproveito esta palavras escritas, a força da sua consistência, para deixar aqui expressa a grande pena que tenho pelo seu desaparecimento, deixo a minha solidariedade para com a família e para com aqueles, tantos, que privaram com ele e que, hoje, lamentam o fim de uma era.

 

Por José Luís Peixoto, revista Sábado (25 de março de 2023)

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Na notícia da perda de Rui Nabeiro

Diogo Infante lê excerto de romance Almoço de Domingo

Na despedida de Rui Nabeiro

Sobre romance Almoço de Domingo

 

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VER TAMBÉM:

José Luís Peixoto na Feira do Livro de Santo Domingo, República Dominicana

 

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Texto de JLP sobre CNAD - Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (Cabo Verde)

JLP em direto a partir da Praia da Lagina, na cidade do Mindelo, Cabo Verde

Texto de JLP sobre Mumbai, Índia

JLP em direto com alunos da universidade de Deli, Índia

Algumas imagens da passagem de José Luís Peixoto por Cabo Verde:

Impressões de JLP sobre o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design

Vídeo em direto a partir da praia da Laginha, São Vicente

Participação no programa Esta Manhã (TVI) a partir da cidade do Mindelo

Leitura de excerto de Morreste-me na sua tradução em crioulo, Bu More-m

Reportagem na RTP África sobre atividade na Universidade de Cabo Verde

Participação no programa Esta Manhã (TVI) a partir da cidade da Praia

PRAIA

6 de junho, 14h30 – Universidade de Cabo Verde

7 de junho, 8h30 – Liceu Domingos Ramos

8 de junho, 10h30 – Liceu Pedro Gomes

8 de junho, 18h - Biblioteca do Centro Cultural Português da Praia - Apresentação de "Bu More-m" (edição bilingue de "Morreste-me" em crioulo cabo-verdiano e português, edição Rosa de Porcelana). 

MINDELO

12 de junho, 9h30 – Universidade de Cabo Verde (polo do Mindelo)

12 de junho, 18h - Biblioteca do Centro Cultural Português do Mindelo - Apresentação de "Bu More-m".

(JLP estará também presente nas celebrações oficiais em Cabo Verde do 10 de junho, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.)

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VER TAMBÉM:

José Luís Peixoto em Cabo Verde em 2017

Recordações de Cabo Verde de José Luís Peixoto

No dia 30 de maio de 2023, José Luís Peixoto foi convidado da Biblioteca Mohammed Bin Rashid, onde falou sobre literatura portuguesa, assim como sobre a sua obra, nomeadamente os livros que integram o espólio da biblioteca: Cemitério de Pianos e Galveias (edições árabes) e Nenhum Olhar (edição norte-americana). 

Na sequência dessa apresentação, foi agraciado com o galardão da biblioteca pelo presidente da Fundação, Sua Excelência Mohammad Ahmad Al Murr.

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VER TAMBÉM:

José Luís Peixoto no topo do Museu do Futuro

Na formação e na vida, a televisão não substitui a leitura e o cinema

 

Às vezes, dou por mim a falar nisso perante uma plateia que me olha como se estivesse a dar notícias de um mundo meio real, meio imaginário. Não preciso de pensar muito no que estou a dizer porque, por preguiça, utilizo quase sempre as mesmas palavras, basta-me seguir o desejo de exotismo que encontro nos olhos que me fixam. Então, parece-me, sou um pouco como aqueles escritores africanos ou sul-americanos a quem se exige episódios coloridos, personagens singulares, anedotas, contos com moral.

 

Ainda assim, cada vez mais raramente, acontece estar alguém na sala que também conheceu essas bibliotecas, que também lá esteve. Então, de repente, as palavras voltam a ganhar significado, enchem-se. Ouço essa pessoa contar as suas memórias e, durante aquele instante, somos irmãos no olhar. As descrições têm préstimo, mas há uma presença muito mais funda, invisível, há a certeza de que, afinal, aquele tempo e aquele lugar existiram mesmo. Até eu já começava a duvidar.

 

As fitas adesivas coladas nas lombadas eram reais.

 

Uma vez por mês, ao fim da tarde, a carrinha Citroën chegava ao terreiro de Galveias, calhava-nos as quartas-feiras. Ficava estacionada em frente da cooperativa. Em Galveias, depois do 25 de Abril, o clube dos ricos passou a sede da cooperativa. Quando eu chegava, vindo dos lados do São João, já havia outros rapazes e raparigas à volta da carrinha.

 

Impressionava-me a quantidade de livros. Precisava de me esticar para chegar às prateleiras mais altas e, por isso, parecia-me que não tinham fim. O senhor Dinis conduzia a carrinha, recebia os papéis preenchidos com os códigos dos livros que requisitávamos, foi então que aprendi esse verbo, e era dentista. Eu conhecia-o da sala de espera, aquele cheiro antissético, onde aguardava a minha mãe e as minhas irmãs. Encontrei-o no ano passado na biblioteca de Abrantes, tirámos uma fotografia juntos. Aproveito para lhe enviar um abraço. Espero que esteja a ler estas palavras, com saúde.

 

Levávamos sempre a quantidade máxima de livros. E, sim, é verdade aquilo que costumo dizer: líamos muito depressa os que tínhamos e, depois, íamos trocando entre nós até ao regresso da biblioteca no mês seguinte.

 

Esse era também o tempo das sessões de cinema do Inatel no centro paroquial e na casa do povo. Foi dessa forma que, em Galveias, desci a ladeira, passei pela travessa da fonte e cheguei a casa com o rosto incendiado pelo Apocalipse Now. Foi também assim que assisti ao Baile, de Ettore Scola, sentado em cadeiras de tábua dura exatamente como aquelas em que assistia a bailes no salão da sociedade filarmónica. Poderia agora dar muitos outros exemplos.

 

Conheço as crianças de Galveias. Há dois anos, estive na escola onde também eu aprendi a ler e vejo-as na rua quando lá vou. No entanto, se quero identificá-las, tenho de perguntar-lhes quem são os seus pais. Nos sábados de manhã, ouve-se muito menos crianças a brincar do que no meu tempo. No ano passado, na minha terra, morreram mais de cinquenta pessoas e nasceram apenas duas.

 

As crianças de Galveias são iguais às de antes. Sinto pena que tenham menos do que eu tinha há quase trinta anos. Não se evoluiu. Na formação e na vida, a televisão não substitui a leitura e o cinema.

 

Ao falar de bibliotecas itinerantes aos meus filhos ou a essas crianças, sinto que sou como o meu pai quando me contava histórias da sua infância. Eu sabia que se tinham passado com ele mas, para mim, esse conhecimento era muito vago, pareciam lendas. No entanto, esse tempo era tão concreto como este. Um dia, este tempo, hoje de manhã, ontem, este preciso momento, será contado pelos meus filhos e por essas crianças com o mesmo tom com que agora falo de bibliotecas itinerantes. Naquele tempo, dirão. E aquele tempo será isto, tão concreto, tão prosaico, tão isento de magia. Estes objetos sem graça serão esse incrível futuro, esse misterioso passado.

 

Eu, que estou aqui neste instante, também estava lá, a cheirar aqueles livros, a subir para a carrinha, a escutar a voz do doutor Dinis. Por isso, ainda que use as mesmas palavras até à exaustão, hei de continuar a repetir esta história. Sempre. É a minha história.

 

José Luís Peixoto, in Visão, Março de 2014

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Esta fotografia é extraordinária

A maior barba de sempre

José Luís Peixoto participará nas seguintes atividades em Londres:

18 MAIO 2023 - 5:30 p.m. — José Luís Peixoto falará sobre o livro "ONDE, o exemplo de Abrantes, Constância e Sardoal" no âmbito do evento "Foods and Thoughts of the Center of Portugal, a literary and gastronomic journey through the quaint cities and villages of the centre of Portugal" (destinado a imprensa e tour operators, entrada por convite da Embaixada de Portugal em Londres).

19 MAIO 2023 - 4:00 p.m. — encontro com alunos de português do ensino secundário em Londres. 

21 MAIO 2023 - 2:00 p.m. - BRITISH LIBRARY - Debate em The European Writers' Festival sobre o tema "Stories of Language and Translation". Aberto ao público. JLP estará disponível para autografos e para receber os leitores dos seus livros. Toda a informação AQUI

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O meu restaurante preferido no Sri Lanka

Em direto do bairro de Kudi Chin, Banguecoque

Na despedida de Rui Nabeiro

No âmbito das celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa, José Luís Peixoto participou em atividades que tiveram lugar em Deli e em Goa. 

No dia 2 de maio, fez uma palestra junto dos alunos da Universidade de Deli.

No dia 5 de maio, falou para os alunos da Universidade de Goa e, também nesse dia, fez leituras, participou numa conversa pública e numa sessão de autógrafos no Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões em Goa. 

Leitura acompanhada por dança Centro de Língua em Goa

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Com alunos de português da Universidade de Deli.

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Com alunos de português da Universidade de Goa




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Arquivo de recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.

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