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Temos mesmo de odiar aqueles com quem não concordamos?
Os seus gestos e palavras incomodam-nos. Às vezes, é a sua própria presença que nos incomoda. Aparecem na televisão e mudamos de canal. Se insistirem nos comentários, bloqueamo-los no facebook. Pergunto: se tivéssemos todo o poder, se não fôssemos julgados por ninguém, se bastasse estalar os dedos para que se cumprisse a nossa vontade, o que lhes faríamos?
A resposta a esta pergunta diz mais sobre nós do que sobre eles. É fundamental possuirmos uma ideia acerca de como gostaríamos que o mundo fosse, uma direção; mas, parece-me, também importa que, nesse ideal, encontremos um espaço para os que discordam dele. Uma utopia em que todos acreditem no mesmo é fácil de construir.
Nós existimos com os outros e, muitas vezes, por causa dos outros. A existência dos outros reflete a nossa, alarga-a e, claro, o mesmo acontece na direção oposta. Nós e os outros somos uma espécie de espelho. Mas há uma diferença fundamental: a nossa sensibilidade é-nos intrínseca, reconhecermos a sensibilidade dos outros requer um esforço intelectual de empatia.
Criticar os outros, agindo da mesma maneira, é incoerente, não faz sentido, a não ser que estejamos convencidos de que o nosso principal valor é sermos nós.
Pode acontecer que não estejamos a considerar os outros em todas as suas dimensões. Se aceitamos que são seres humanos, temos de reconhecer-lhes humanidade. Há aquilo em que não estamos de acordo e que pode magoar-nos se for importante, se for violento, mas é muito provável que exista uma enorme quantidade de assuntos em que pensamos exatamente a mesma coisa. Estar disponível para essa procura é querer saber mais, não ter medo de saber mais.
Eles discordam de nós, eles decidiram dedicar a sua vida a combater aquilo que achamos certo. Esse ponto de vista custa-nos porque, afinal, nós prezamos a opinião deles. Eles têm importância para nós. Admiti-lo não é um sinal da nossa fraqueza, é um sinal da nossa força.
Temos mesmo de odiar aqueles com quem não concordamos?
Claro que não, apenas temos de odiar o ódio.
José Luís Peixoto, in Notícias Magazine (11 de junho de 2017)
Há pouco mais de um ano, ninguém me fazia perguntas sobre Fátima e, no entanto, eu passava os dias a pensar em Fátima. Nessa época, escrevia um livro a que chamei "Em Teu Ventre" e que trata esse tema. Só tinha contado à minha família e, considerando os meus livros anteriores, poucos leitores suspeitavam que tivesse escolhido esse assunto.
De certo modo, escrever um livro é sempre um segredo. Enquanto as palavras ainda não estão no papel, já com o seu formato definitivo, existem apenas para quem as escreve. Nesse momento, são uma espécie de visão. Então, quando essas palavras são publicadas, o segredo é libertado no mundo: mistura-se com o olhar dos outros. Por consequência, muda a forma como os outros veem e, também, a forma como os outros nos veem.
Foi justamente nos olhares dos outros que encontrei as primeiras questões. Ainda sem terem lido uma página, quando se mencionava o tema "Fátima", todas as perguntas eram formas explícitas ou subliminares de me colocarem uma única pergunta: acredita?
Como sempre acontece, fui respondendo na medida das minha possibilidades. Em nenhuma ocasião respondi sim ou não. Por um lado, não creio que a resposta a essa pergunta seja apenas sim ou apenas não, a não ser que se simplifiquem as questões até ao seu elemento mais básico, tão básico que já não é sequer representativo do que se está a falar. Por outro lado, porque a minha intenção primeira, uma das que me levou à escrita do livro, foi justamente encontrar uma maneira de falar de Fátima que não passasse por esse separar de águas, esse muro divisor: acredita/não acredita.
Nem todas as pessoas que afirmam acreditar em algo comum o fazem da mesma forma. Acreditar não é preto e branco. Também me parece que nem todas as pessoas são cépticas da mesma forma. Há inúmeras gradações e particularidades no que toca à crença e/ou à fé. Não existe um interruptor para a fé ou o cepticismo. Até a luz eléctrica, que utiliza interruptores, não é igual em todas as circunstâncias, depende da lâmpada, da intensidade da corrente e de uma série de outros elementos que os eletricistas saberão enumerar. Até a escuridão, estou convencido, não é sempre igual.
Assim, depois de tentar superar a dificuldade de escrever um livro que tratasse a questão de Fátima de forma direta, concreta, honesta e que recusasse essa segregação prévia, fiz uma sequência de apresentações em todo o país. Ao vivo, diante de públicos que não estavam claramente de um ou de outro lado dessa linha, assisti ao jeito como a conversa custava a iniciar-se, o desconforto que as pessoas começavam por ter e, depois, à medida que eu continuava a falar, assisti também à forma como essas mesmas pessoas se iam libertando e, a pouco e pouco, intervindo sobre um tema que, afinal, no nosso país, toda a gente conhece e tem alguma coisa a dizer.
Fátima é um tema multidimensional. Ao longo destes cem anos, assumiu uma enorme importância política e social. Em grande medida, pode dizer-se que houve uma certa sensibilidade acerca deste tema que foi paralela às próprias alterações políticas e sociais do país. Por tudo o que dizem sobre nós, essas são questões de grande interesse, que merecem ser levantadas, observadas e reflectidas.
Já no que toca à sua dimensão religiosa, Fátima é um assunto que está na esfera da sensibilidade íntima de cada um. A liberdade religiosa é uma conquista civilizacional. Não devemos estar dispostos a abdicar dela em nenhuma circunstância.
Nesse sentido, é fundamental que crentes e cépticos se saibam respeitar entre si, só assim poderá existir um diálogo edificante. Não vejo razões para duvidar que uns possam aprender algo com os outros. Se não estivermos de ouvidos fechados, de olhos fechados, podemos sempre aprender algo com os outros, podemos sempre descobrir algo novo. E os outros, claro, não são uma abstração. Os outros são aqueles que têm opiniões realmente diferentes das nossas.
Assim, não vou aqui afirmar a minha crença ou a falta dela em relação às aparições de Fátima. Não sinto necessidade de o fazer e, ao mesmo tempo, não quero tingir as leituras que possam ser feitas do meu livro com as cores desses preconceitos. Tenho a ambição de que o meu livro não seja apenas um afago tranquilizante que estes ou aqueles usam para se autojustificar. Em vez disso, desejo que seja um confronto com uma perspetiva diferente, nova, de algo que talvez já estivesse cristalizado, que já não se visse realmente.
José Luís Peixoto, in Fátima XXI (Outubro de 2016)
Faltam-me palavras para explicar a maneira como a lonjura cabe inteira no meu olhar. Possuo longos braços invisíveis. Esta distância amplia-me. Num instante, conheço as brisas desde sempre, temos a mesma idade, tocamo-nos com a mesma pele. Algo de mim sobrevoa estes telhados, ruas, praças, copas de árvores. Um sobressalto acerta-me no fôlego que, de repente, também é imenso. No topo do castelo, debaixo de arcadas góticas, inspiro toda a cidade de Leiria, sinto-a no interior dos pulmões, fresca a esta hora, e expiro-a, sopro-a de volta ao seu lugar justo.
Tenho o rabo gelado. Estou sentado num banco de pedra, condensação mineral das sombras de séculos. As vozes da minha mãe, admirada, e da minha irmã, explicativa, chegam-me das costas, embaraçam-se uma na outra. Não se estendem até lá a baixo, ficam aqui, presas às suas teimas, trazem-me de volta para aqui. O meu pai tem as mãos nos bolsos, olha para longe.
Entrámos no castelo de Leiria sem dúvidas. A altura das muralhas incentivou-nos, as plantas a crescerem nos interstícios das pedras também. A minha irmã era a primeira a subir os degraus, não sei o que a puxava. Eu seguia-a sob a gentileza das árvores e do céu. Este é um verão gentil, abrandou por nós, atenuou o seu ímpeto para nos permitir esta tarde. Os meus pais vinham atrás, sem pressa, a conversar. Pensei em quantos teriam subido aqueles degraus, sem conseguirem imaginar que repetiríamos os seus passos, agora com sapatilhas, agora com a máquina fotográfica que o meu pai prende com uma correia ao pulso. Estas pedras são feitas de muito tempo.
Procuro a carrinha na paisagem. Deixámo-la estacionada junto de um posto da polícia, ideia da minha mãe. Não a encontro. A minha irmã aponta para uma área, como se a própria cidade fosse um mapa aberto à nossa frente. O meu pai discorda, aponta para o centro, a praça principal, aponta para o rio Lis e, a partir dessas referências, calcula mais ou menos a localização da carrinha.
Anoiteceu. Estou sentado no banco da frente da carrinha, ouço uma rádio de Leiria, música americana. Lá atrás, já acabaram de montar a cama, colchões de espuma, e já estão todos deitados. O meu pai conversa com a minha irmã acerca dos caminhos da cidade, refere-se ao rio Lis. O meu pai não perde uma oportunidade de dizer esse nome, rio Lis, adora. A minha mãe chama-me. De cuecas e camisola de algodão, estou pronto para dormir. Abro as cortinas que dividem a carrinha e passo para trás.
Tenho de ter cuidado para não pisá-los. De um lado, o meu pai; ao meio, a minha mãe; do outro lado, a minha irmã. Deito-me aos seus pés, atravessado. Sou o único que cabe nessa posição. Entro no saco-cama. Quase a sussurrar, a minha mãe termina qualquer ideia e, a seguir, diz: vá, agora vamos dormir. Sinto-os a acomodarem-se e, depois, a repousarem a respiração. Há um instante que permanece. Abro os olhos para vê-lo. As cortinas das janelas estão fechadas, filtram a luz dos candeeiros públicos, transformam-na em penumbra. Passam carros lá fora, os seus faróis dançam no tecto da carrinha.
José Luís Peixoto, in revista UP (maio, 2017)
Enquanto estamos aqui, eles estão lá. Reconhecer a existência dos outros é o passo mais essencial para respeitá-los.
Afirmar o interior do país e o meio rural como uma realidade folclórica, exótica, ligada exclusivamente ao passado, é um insulto. Se existe agora, neste momento, então é presente. Se há quem ande de carroça hoje, então hoje também se anda de carroça. Não é possível levar uma vida no passado, acorda-se sempre no dia em que se está. Defender que a realidade do interior não é contemporânea transporta a visão tendenciosa e preconceituosa de que o nosso tempo é intrinsecamente urbano.
Também há quem argumente que o interior já não é rural, que a sua cultura hoje é tão urbana quanto a de qualquer cidade. Há duas possibilidades que contribuem para essa ideia: ignorância ou cegueira. Ou não sabem o que estão a dizer, ouviram daqui e dali e juntaram essas peças segundo o modo como gostam de imaginar o mundo; ou estiveram lá, mas não foram capazes de ver, mediram os outros pelos seus próprios critérios, baralharam as proporções, tomaram alguma coisa por outra coisa qualquer. Acharam talvez que, por haver televisão e Internet, não existia uma forma própria de entender o mundo e a vida.
As certezas absolutas que tínhamos acerca da modernidade e do desenvolvimento trouxeram-nos aqui. Foram elas que despovoaram o interior e transformaram aqueles que lá continuam numa minoria. A discrepância é enorme: uma aldeia assinalada no mapa tem menos gente do que o prédio mediano de uma qualquer avenida. Por isso, como sempre acontece com as minorias desfavorecidas (principalmente quando nem sequer são reconhecidas como tal), os seus direitos não são defendidos, a sua cultura é posta em causa.
A ruralidade não é o estereótipo da ruralidade. As piadas com personagens do meio rural têm a mesma raiz que as piadas sobre negros, homossexuais ou loiras. A discussão acerca da sua pertinência é a mesma.
Porque temos tantos problemas com os outros, mesmo quando estão na sua vida, apenas a lutar por sobreviver? Como nos deixámos convencer que engrandecemos se inferiorizarmos os outros?
Neste preciso momento, estamos a preparar o futuro. Se é verdade, apesar de não ser a única verdade, que a ruralidade mantém relações com o passado, temos todo o interesse de aproveitar essa sensibilidade, essa experiência. Não nascemos de geração espontânea. Chegamos de algum lado, que também nos constitui. A nossa história é parte de nós, mesmo que a recusemos. Desprezar a nossa história e a nossa cultura é desprezarmo-nos a nós próprios.
Enquanto estamos aqui, eles estão lá. A nossa realidade partilha este tempo com a realidade deles. Este tempo não pertence mais a uns do que outros.
Parece-me pertinente considerar a hipótese de que o futuro desejável possa conter um pouco desse mundo. E se o interior do país e a ruralidade contiverem não apenas passado, mas também futuro?
Em todos os instantes construímos o que virá. Estamos aqui, existimos, ainda estamos a tempo.
José Luís Peixoto, in revista UP, fevereiro de 2017
Começamos pela infância e, por isso, ficamos com o resto da vida para recordá-la. Dispomos de muito mais tempo para essa evocação do que tivemos para realmente vivê-la.
Com os anos, as lembranças podem estender-se, os seus contornos explodem devagar, ou podem encolher, ficam lá longe, no fim do túnel. Em qualquer dos casos, os anos distorcem as lembranças e, agora, custa a aceitar que esses dias duraram o mesmo do que estes. Às vezes, parece que foram muito maiores, cada instante parado, como uma fotografia que podemos analisar durante horas; outras vezes, parece que foram muito mais curtos, tardes a escorrerem como areia entre os dedos de uma mão aberta.
Em grande medida, a relação com a infância é a relação com a memória. Há tudo o que esquecemos, como seria útil se ainda tivéssemos essa lucidez, e há tudo o que queremos acreditar à força, bom e mau. Aos poucos, a infância transforma-se num enigma: para podermos considerá-la, temos de decifrá-la e, no entanto, éramos nós que estávamos lá.
No outro extremo da linha, a maior parte da velhice é vivida por antecipação. Sem termos sequer a certeza de que lá chegaremos, perguntamos: como serei quando for velho?
A resposta varia de acordo com quem formos nesse momento. Um adolescente, por exemplo, acredita que será um velho com valores de adolescente. A ideia de quem seremos transfigura-se ao longo da vida. Quando chegar o tempo de viver a velhice, essas conjeturas valerão de muito pouco. Então, havemos de pensar e decidir de acordo com a perspectiva e os critérios que tivermos nessa altura.
Até atingirmos essa idade, a relação com a velhice é a avaliação que fazemos do futuro. Essa conta será feita de acordo com o que sabemos, com o que não tivermos esquecido.
E , ainda assim, todos nos cruzamos nas ruas e nas praças: os filhos dos outros, demasiado barulhentos e levemente irritantes, os velhos que achamos que nunca seremos, os adolescentes isentos de dúvidas e nós, que já não somos crianças ou adolescentes e que, independentemente da idade, nunca seremos mesmo velhos.
O país de cada um deles cruza-se com o país dos outros, mesmo quando são antagónicos. Agora, esforçamo-nos por recordar como éramos em crianças e, ao mesmo tempo, há crianças a assistirem a este momento com os olhos semelhantes àqueles com que assistíamos então. Agora, há velhos que tentam lembrar como foi ter a nossa idade e que, talvez, sejam muito parecidos com a pessoas que, estamos convencidos, seremos quando tivermos a idade deles.
Quem tem razão? Qual é o país mais certo? As crianças têm a sabedoria da sua inocência, o livre descontrolo dos sonhos. Os velhos têm a memória distorcida do que experimentaram, têm tudo o que conseguiram não esquecer. Os outros, entre crianças e velhos, têm as suas lutas e ilusões.
Contemporâneos, simultâneos, somos uma multidão de indivíduos. O país não é apenas o que achamos dele, não temos uma sensibilidade tão apurada. O país somos nós, todos e cada um: tanto é aquele que nasceu ontem e que se impressiona com os detalhes mais naturais, a luz, as cores; como é aquele que tem memórias que mais ninguém tem e que morrerá amanhã, apesar de ainda não o saber.
José Luís Peixoto, in UP, Janeiro de 2017.
Prefácio de José Luís Peixoto ao livro "Quadro de Honra", livro com mais de 30 entrevistas a bandas históricas de rock alternativo (metal, hardcore, etc) português.
UNDERGROUND FOREVER
por José Luís Peixoto
Estamos aqui. Chegará um dia em que tudo o que constitui este instante será passado. Essa é uma verdade simples de que ninguém duvida. Aceitamo-la enquanto teoria que conhecemos desde sempre, certeza que faz parte do essencial. No entanto, quando esse dia chegar mesmo, quando tudo o que constitui este agora, estiver à beira de desaparecer, havemos de admirar-nos com a fugacidade do tempo e da vida.
O entendimento que os seres humanos têm do tempo depende da sua perspectiva, do que viveram, do que esperam viver, do que estão a viver. Agora, temos problemas e desafios que nos parecem enormes. Neste momento, são tudo. Daqui a algumas semanas, meses ou anos, quando já conhecermos o desenlace que inevitavelmente terão, havemos de relativizá-los porque, nessa altura, já estaremos frente a outros problemas e a outros desafios, a nossa perspectiva terá mudado.
O presente é uma espécie de quarto, estamos nele. Sabemos que a casa tem outras divisões, somos capazes de imaginá-las, mas não é lá que estamos, a sua realidade não é concreta. Escolhi comparar o presente com um quarto porque foi no meu quarto de adolescente que, pela primeira vez, ouvi uma grande parte da música que está referida neste livro.
Terminavam os anos oitenta, começavam os anos noventa. Eu tinha 16, 17, 18 anos. O primeiro concerto a que assisti da música que eu gostava foi Ratos de Porão, na Incrível Almadense, em janeiro de 1992. A primeira parte foi feita por Procyon, uma banda que, então, tinha uma demo tape de sucesso e um teledisco, como dizíamos, que passou no Pop Off, o programa de televisão que dava no segundo canal a horas que eram tardias para mim porque, nas manhãs seguintes, entrava cedo na escola.
Esse concerto ficou conhecido por alguns mitos, como o boato generalizado de que tinham morrido pessoas do público. Não sendo verdadeiro, esse boato era bastante verosímil. Ao longo do concerto, foram muitos os que se lançaram dos balcões mais altos da Incrível Almadense, como aliás ficou registado em algumas fotos impressionantes do Cameraman Metálico, também ele uma instituição que marcou esses anos.
Faz muito sentido que a primeira banda a que assisti ao vivo pertencesse ao chamado crossover. Os Ratos de Porão estiveram entre as primeiras grandes bandas que misturaram metal e hardcore. Essa era também a minha filiação. Depois de começar a ouvir metal no início da adolescência, a rebeldia social do hardcore cativava-me. Estas palavras são muito insuficientes para descrever a importância que esse concerto teve para mim.
No ano passado, vinte e cinco anos depois, cruzei-me com o João Gordo, vocalista dos Ratos de Porão, no parque de estacionamento de um centro comercial em São Paulo. Abordei-o e disse-lhe que tinha estado lá, nesse concerto. Ele disse "sim, sim" e fez algumas piadas por eu ser português. Não lhe levei a mal, mas fiquei a pensar nesta dicotomia passado/presente.
Em 1991, no Alentejo, eu maltratava uma pobre guitarra Fender numa banda chamada Hipocondríacos. Escolhemos o nome com um dicionário na mão. Nos flyers que enviávamos com a correspondência, definíamos o nosso som como hardcore/grindcore. Sem recursos e sem talento, tentávamos imitar algumas das bandas mais intensas a que conseguíamos chegar: Napalm Death, Slayer, Extreme Noise Terror, etc.
As nossas glórias foram: 1) os ensaios, onde se juntavam sempre meia dúzia de amigos; 2) um par de demo tapes que registámos diretamente com um gravador (rec+play); 3) a inclusão em algumas compilações de bandas portuguesas em cassete; 4) a primeira parte de um concerto dos Braindead que, na altura, tocavam um thrash que adorávamos.
Creio que já ouvi mais vezes o nome dessa minha banda depois de publicar livros, quando me perguntam acerca disso em entrevistas, do que durante os dois anos que durou. Ainda assim, a importância que teve para mim é enorme e difícil de quantificar. Devido a essa experiência, respondi a inúmeros questionários de fanzines. Neles, era obrigado a encontrar palavras que definissem aquilo em que acreditava. Crescia assim.
Recordo esse passado com muito detalhe. Consigo ainda sentir como o vivia quando era presente. Também essa sensação é inexprimível. Levo dentro de mim o que ainda está vivo desse passado. Quando conto as suas histórias a quem não as viveu, parece-me que não consigo explicar realmente o que pretendo dizer.
Talvez seja assim com todas as épocas. Com muita probabilidade, no futuro, haverá alguém a tentar explicar este momento, este agora, e a não ser capaz de fazê-lo completamente. Será alguém com os olhos a brilhar, que dirá "naquele tempo", que terá uma expressão oblíqua por se sentir incompreendido.
As páginas que se seguem trazem-me muitas lembranças e, em vários casos, arrumaram-me a memória. Ao longo dos anos 90, fui uma das cabeças que abanaram em concertos de bandas como os Sacred Sin, os Shrine ou os Decayed. Tive as demo tapes e, depois, os discos de bandas como o Thormenthor ou os Mata-Ratos. Assisti a concertos memoráveis de bandas como os Ramp ou os Mão Morta. Andei em concertos da margem Sul, da linha de Sintra, Linda-a-Velha, Sacavém, Alverca, Juke Box, Ritz Club, Rock Rendez Vous, etc.
Este livro contém duas bandas que, pelo muito que partilhámos não poderia deixar de fazer uma menção especial. É esse o caso dos X-Acto, que contribuíram muito para a minha formação ética e com quem partilhei anos que jamais esquecerei. E é também o caso dos Moonspell, família, irmãos com quem posso sempre contar e podem sempre contar comigo. Sem falsas presunções, de uma forma que só eu e eles sabemos, os X-Acto e os Moonspell deram-me o privilégio de sentir que também fiz parte dessas bandas. Essa é uma experiência que me sensibiliza profundamente, que me define e que levarei por toda a minha vida.
Ainda assim, quando recebi o convite para escrever estas palavras, perguntei-me se seria merecedor desta honra. As páginas deste livro evocam um tempo que é maior do que cada um de nós.
Quem passou pelo underground, como sempre lhe chamámos, sabe o quanto aprendeu. O underground significava não esperar por ninguém para fazer o que queríamos fazer, o que tínhamos de fazer, o que nascemos para fazer. O underground significava acreditar. Sem essa experiência, não estaria aqui.
Underground forever, escrevíamos nós no fim das cartas que enviávamos com selos cobertos por cola, para serem usados muitas vezes. Cooperation, not competition, escrevíamos também.
As bandas que encerram este livro são herdeiras desse tempo. Noutra época, com vantagens e desvantagens, mostram que os problemas e os desafios não terminaram, nunca terminam.
Ainda bem que existe este livro. Contribui de maneira honesta para mostrar que aquele tempo existiu, o underground existiu. E mesmo que não consigamos explicar completamente o quanto que significou para nós, este livro ajuda-o a permanecer durante mais algum tempo, faz com que um pouco daquilo que o underground foi continue a existir agora.
Perdemos a capacidade de explicar às gerações mais novas como era antes. Podemos iniciar essa tentativa mas, ao fim de minutos, ou nos confundimos e começamos a divergir, ou eles se desinteressam e começam a escutar música de elevador dentro da cabeça, ou talvez escutem aquele ruído estático de quando os canais de televisão não emitiam programas durante vinte e quatro horas por dia, aquela imagem de grão cinzento que quase esquecemos também.
É normal que os mais jovens deixem de nos prestar atenção, é sempre assim quando alguém começa a falar uma língua que não entendemos. Raramente nos sentimos tão sozinhos como num jantar de polacos. Também é normal que nos falte coerência e articulação, fomos soterrados pelo tempo.
Parecia controlável, era incontrolável.
Hoje, os telemóveis são pequenas extensões do mundo ou, com mais probabilidade, de nós próprios. Há realidades e paisagens que apenas existem na internet, mergulhamos nelas. Com o telemóvel na mão, de repente, deixamos de ser um corpo com vontade e propósito, passamos a ser um objecto que está ali, um obstáculo com volume e textura, mas cuja existência está noutro lugar qualquer. Há muito que deixou de ser notícia a imagem de toda a gente nos transportes públicos a ver o telemóvel, toda a gente na sala de espera a ver o telemóvel.
Num esforço da memória, admiramo-nos com o tamanho dos primeiros aparelhos, com o gesto que tínhamos de fazer para puxar a antena quando recebíamos uma chamada, com aquele toque irritante da Nokia. Estas lembranças impressionam-nos, sobrepomo-las a tudo o que sabemos agora. Levamos no telemóvel a internet: a possibilidade de contactar todos com quem já nos cruzámos, um escritório inteiro e distrações para todos os gostos, para todos os likes.
Agora, a esta distância, olho com uma certa ternura para aqueles que, nos anos noventa, juravam que nunca iriam ter telemóvel. Insurgiam-se contra a obrigação de estarem sempre contactáveis, achavam (com razão) que perdiam liberdade. Hoje, essa ideia desapareceu. Agora, ninguém quer estar incontactável. Preocupamo-nos de morte quando sabemos que algum amigo nosso está incontactável. Sem pensarmos muito nisso, sem debate, damos por garantido que os telemóveis salvam vidas. Hoje, se alguém garante que ficou sem rede ou sem bateria, pensamos: mentiroso, adúltero.
Aqueles que juravam que nunca iam ter telemóvel são como os romanos que permaneceram na Península Ibérica depois da chegada dos árabes, são como os árabes que se deixaram ficar após a chamada "reconquista cristã". Ou, com mais precisão, são como os cristãos-novos, os judeus que, no século XV, foram obrigados a converter-se ao cristianismo.
De nada vale dizer-lhes: eu bem te avisei. Com mais certeza, se não tiverem esquecido completamente quem eram, serão eles a dizer-nos essa mesma frase.
Ao contrário do que se costuma afirmar, a internet não é para sempre. Em poucos lugares os assuntos envelhecem tão depressa. Ao fim de algumas semanas, já ninguém quer ver a sex-tape da estrela do maior reality show do momento; ao fim de alguns meses, já ninguém sabe quem essa pessoa é.
Seguramente que a memória não ficará salvaguardada nas redes sociais. As redes sociais são feitas de presente. Nelas, o passado desaparece da forma mais absoluta de todas: perde significado.
Os adolescentes passam as reuniões de família a olhar para o telemóvel. Um dia, estes adolescentes serão pais em reuniões de família. Para onde irão olhar os adolescentes do futuro?
José Luís Peixoto, in GQ, Maio de 2016
Entre as letras, as vogais são como o vento. Havendo fôlego, um a pode continuar para sempre, pode nunca terminar. Um e distorcido pela lonjura, repetido pelo eco, pode afastar-se e aproximar-se, pode ondular, dar voltas no ouvido, bumerangue ou avião de papel. Há uma forma de liberdade que só existe nas vogais.
Poesia é uma palavra que tem quatro vogais.
Como o mundo inteiro, como todos os momentos, como a própria vida, poesia é ordem e loucura. É ordem quando aquilo que nos faz mais falta é disciplina rigorosa, vírgulas que não poderiam pertencer a nenhum outro espaço, quebras de verso que deixam as batidas do coração na expectativa de um segundo, e é loucura quando esquecemos o essencial, quando precisamos de ser lembrados.
No entanto, como todos os termos, a palavra loucura é um paradoxo. Podemos acordar verdes, podemos falar com o silêncio, podemos agitar o céu, nada disso é loucura, estes são exemplos de realidade nítida. A maior loucura é acreditar que os dias existem no calendário, que 1+1 é sempre 2, que não vale a pena. Tudo vale a pena. Poesia é loucura contra a loucura. Como todos os termos, a palavra poesia é um paradoxo.
Poesia é uma palavra feita palavras e, como tal, é um paradoxo feito de paradoxos. No poema, como numa torre, todas as palavras são paradoxos em conflito consigo próprios e uns com os outros. Se tirarmos um tijolo, toda torre perderá força e, tarde ou cedo, cairá. É a tensão que os tijolos mantém entre si que permite o equilíbrio da torre. A poesia é uma torre sobre a vida e sobre a morte.
As estações e a intempérie castigam os tijolos, desgastam-nos. Ainda assim, há torres que duram séculos, esquecemos aqueles que as construíram. Também as palavras, apesar da erosão que as atinge, podem durar séculos. Temos a obrigação de acreditar que são eternas. Tudo o que está vivo tem a oportunidade de ser imortal.
No entanto, um monte de tijolos não é uma torre, um monte de palavras não é um poema. Chamem-se os engenheiros civis, por favor. Chegou o momento de considerar a ordem.
Nomear é uma forma sofisticada de organização. Quando os nomes assentam sobre algo, visível ou invisível, são como uma nova camada de realidade. Aquilo que é nomeado torna-se concreto como uma pedra na palma da mão, como uma pena entre o indicador e o polegar. Então, podemos encontrar o lugar certo para esses objetos. Não faltam maneiras de arquivá-los: peso, tamanho, sabor.
Se essa ordem fizer sentido transportará verdade.
A verdade é um espelho.
De certo modo, um poeta é um engenheiro civil que constrói espelhos. De certo modo, o poema é um espelho. Mas, de certo modo, o poema é qualquer coisa.
O poema é respirar, cada vez que inspiramos e expiramos, ar limpo a limpar-nos o sangue. O poema é fechar os olhos, existir num lugar sem luz e sem corpo. O poema é sorrir, reflexo que não decidimos e que chega aos outros, entre nós e os outros, milagre.
Precisamos muito de poesia. A nossa grande sorte é que a poesia está em todos os lugares onde estamos, como uma sombra do que vemos, pensamos, dizemos, somos. A poesia está no que fazemos bem e no que fazemos mal. O desafio é procurá-la, aceitá-la, aprender a sentir-lhe o gosto. Dessa maneira, a vida ganha um brilho que, afinal, sempre esteve lá.
Repito: quando os nomes assentam sobre algo, visível ou invisível, são como uma nova camada de realidade.
As palavras sabem tudo.
Dentro das palavras, as vogais são como o sopro de uma flauta, música humana. As consoantes também são necessárias, há uso para todas as matérias, mas é preciso ter muito cuidado com as suas arestas. Podem cortar: p! Ou, quando permitem a repetição, rrrr ou vvvv, as consoantes são máquinas, são motores. As vogais chegam em paz, diluem-se na cor, preenchem o ar. Como se não sentissem o peso, as vogais transportam a vida das palavras.
Poesia é uma palavra que tem quatro vogais.
José Luís Peixoto, texto lido por Rui Mendes em homenagem à poesia e a José Régio, realizada pela Fundação INATEL em Portalegre, no dia 21 de março de 2016
Como se distinguem as pessoas que não merecem respeito? Uma resposta clara a esta questão teria muita utilidade, ajudaria a avaliar a legitimidade das faltas de respeito.
Nas redações da catequese e nas conversas sobre o boletim meteorológico, toda a gente merece respeito. No mundo real, não é assim. Hoje, o desenvolvimento tecnológico permite-nos novas formas de desrespeitar os outros. As formas antigas não perderam atualidade, continuam disponíveis para os nostálgicos, mas acrescentaram-se muitas outras, mais confortáveis e eficazes para quem desrespeita.
Ao contrário do que Salazar apreciava, "respeito" não é sinónimo de "obediência" ou "submissão". "Respeito" é sinónimo de "consideração", s. m., é aceitar que os outros, independentemente de se concordar ou não com eles, têm o direito de existir.
Desrespeitar é negar o direito de existir, desrespeitar é uma forma de aniquilação moral. As diferenças entre desrespeito e opinião são muito mais concretas do que as apologias do desrespeito querem fazer crer. O desrespeito começa por ser um sentimento e, só depois, se exprime em palavras ou ações. Quando não é gratuito, o desrespeito nasce de uma dor: em algum momento, o desrespeitado lembrou o desrespeitador de algo que o incomoda em relação a si próprio. Nesse caso, o desrespeito é uma resposta. No entanto, não tem a ver com a pessoa a que se dirige, com aquilo que ela é, tem a ver com a imagem construída por aquele que desrespeita, tem a ver com aquele que desrespeita.
Ainda assim, hoje, vende-se o desrespeito muito barato. Desrespeita-se os outros em troca de uma gargalhada murcha, de um semi-sorriso, da convicção vaga de que esse desrespeito será identificado como inteligência e perspicácia. Independentemente da gratificação em causa, o desrespeito é sempre egoísta, é sempre um sinal de narcisismo e de vaidade.
Neste tempo, o desrespeito é também um sinal da crise. Há quem desrespeite como modo precário de vida. O mesmo desespero que leva jovens licenciados a estágios não remunerados e a call centers, leva muita gente ao desrespeito. Uns e outros acreditam que, aí, conseguirão encontrar alguma coisa que os salve do nada que vislumbram à sua volta.
Em qualquer dos casos, o desrespeito é uma agressão. O desrespeito é sempre uma agressão.
José Luís Peixoto, in Notícias Magazine, 13 de março de 2016
São como barcos à deriva na noite. Existem ainda, podemos vê-los, as fotografias do seu rosto estão bem focadas mas, ao contrário de nós, deixaram de estar enredados em tudo, deixaram de preocupar-se, dispensam a oportunidade de partilhar mais links, já chega, não precisam de comentar o que toda a gente comenta, não contabilizam o número de likes.
Os amigos do Facebook que morreram continuam na nossa lista. Não tivemos coragem de desamigá-los, apesar de sabermos que aquele perfil já não lhes pertence, eles já não estão lá. Às vezes, o quadrado com o rosto deles aparece a meio de qualquer caminho prosaico: sugerido quando procuramos alguém com um nome semelhante, quando entramos no perfil de um amigo comum ou por simples capricho da máquina. Entre vídeos de dois minutos, fotografias de alguém na praia e aforismos que podem rimar ou não, esses encontros súbitos lembram-nos que a morte faz parte do mundo.
Às vezes, também pode acontecer que sejamos nós a dirigirmo-nos aos perfis de Facebook dos nossos amigos mortos, sabemos onde encontrá-los. Lá, espera-nos um longo instante, tempo estagnado. O post mais recente que publicaram fala de um tema que o Facebook ultrapassou há muito. Existe uma grande diferença de tom entre esse post, ignorante da morte que se aproximava, e os comentários, póstumos, a lamentarem essa mesma morte. O nosso amigo nunca teve tantos likes e tantos comentários. Demasiado tarde, dirigem-se a ele, tratam-no por tu.
Que post escreveremos nós se soubermos que é o último?
Algum dia chegará essa hora. Espero que não seja novidade para ninguém, não quero ser eu a dar esta notícia aziaga. Algum dia chegará o momento em que todos estaremos mortos, até os mais inocentes, até aqueles que não merecem. Antes disso, no entanto, iremos acumular mortos entre os nossos amigos do Facebook. Se vivermos tempo suficiente, é possível que cheguemos a um momento em que, no Facebook, teremos mais amigos mortos do que vivos. Depois, entraremos também nessa multidão de mortos, perfis baldios, roupas fora de moda nas fotografias. Nesse dia, se olharmos para este instante preciso, acredito que vamos achar que passou pouco tempo entre aqui e lá, entre este e esse momento.
José Luís Peixoto, in Notícias Magazine, 17 de janeiro de 2016
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