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A vida

08.01.14

 

 

 

A chuva insiste de encontro ao pára-brisas. Os contornos de tudo embaciam-se por detrás da água, as cores perdem os limites que as contêm e entornam-se umas sobre as outras. Depois, chega o instante em que as escovas do limpa pára-brisas não conseguem esperar mais. A uma velocidade constante, certa, fazem o seu movimento geométrico, a nitidez cinzenta do céu reflectida pela estrada e, logo a seguir, a chuva de novo. Conduzo devagar.

 

A minha sobrinha fala de pessoas que já morreram. Responde às minhas perguntas, mas o silêncio também lhe serviria. Lembra-se bem do momento em que acordou a meio da noite e ouviu os crescidos a receberem a notícia de uma morte. Hoje, tem vinte e cinco anos. Enquanto fala, acede a impressões de pessoas do passado, é difícil distinguir se são memórias ou apenas pensamentos criados pelo que ouviu dizer, não sabe se está a recordar ou a imaginar. Essa indefinição incomoda-a. Está habituada a lembrar-se de tudo o que pensa. Falo-lhe de outras pessoas, gente que morreu quando era ainda mais pequena. Não tem qualquer memória. Custa-lhe menos chegar a essa conclusão. Sente menos falta daquilo que nunca teve.

 

Conduzo devagar. Durante um instante, as figuras foscas do pára-brisas são a direcção para onde continuo. A voz da minha sobrinha hesita, estende-se no interior do carro, protegida da chuva, com uma fragilidade imperfeita. As pessoas de que ela não se lembra estão dentro de mim. Vejo-as com clareza. Nalguns casos, dirigem-se a mim, tratam-me pelo nome e sorriem, completamente ignorantes de estarem mortas. Sinto a sua presença em detalhes, não tenho de fazer qualquer esforço para os ter presentes: a maneira como penteiam/penteavam o cabelo com os dedos, uma certa expressão do rosto, a maneira como dizem/diziam certas palavras. A limpeza da memória das suas vozes comove-me, a maneira como pronunciam certas palavras, mas sei que não estão vivos, sei que não poderei voltar a ouvir essas vozes que ninguém gravou.

 

Procurando explicações para mim próprio, olho para o passado como se fosse a casa dos meus pais. Aprendi a conhecer cada pormenor das suas paredes, a sua textura, acreditei naquela casa como só um menino é capaz, depois o tempo passou. Aqui mesmo, ou em todos os lugares onde já estive sem me lembrar dela, a casa continuou sempre lá. Está lá agora, com tempo a passar lento nas suas divisões mal iluminadas, as mesmas onde fui criança, o banco onde me sentava ao lume em dias como este, o corredor que a minha mãe atravessava cheia de pressa, o sofá onde o meu pai se sentava já doente, a cama onde eu me deitava a imaginar o adulto que seria/sou, o canto da cozinha onde nesta época do ano decorava a árvore de Natal. E foi assim em todos os momentos. Depois de sair de lá, noutras casas, sem me lembrar, compenetrado em apaixonar-me ou em desiludir-me, a casa estava sempre lá, com tempo a passar nas suas divisões vazias. Enquanto eu tinha filhos, a casa estava lá; enquanto eu publicava livros, a casa estava lá; enquanto eu me preocupava com insignificâncias que já esqueci, a casa estava lá.

 

Tenho trinta e nove anos. Há pouco mais de uma semana, levei a minha mãe neste mesmo carro. Era de noite, os faróis dos outros automóveis formavam estrelas na distância. Eu falava-lhe do meu filho mais novo e disse-lhe que cinco anos passam depressa, disse-lhe que daqui a pouco será adolescente. A minha mãe não concordou, disse-me que não, disse-me que cinco anos é muito tempo. A minha mãe tem setenta e dois anos. Não precisou de repetir ou de explicar melhor o que queria dizer. Entendi-a bem e senti-me envergonhado pela superficialidade e pela arrogância do meu desconhecimento. Realmente, cinco anos é muito tempo. Só passam depressa se não estivermos atentos.

 

Avançamos num veículo frágil, debaixo de uma tempestade inclemente, muito maior do que nós, de um tamanho que não podemos conceber, a transcender-nos, mas estamos aqui. Avançamos em direcção a figuras foscas, a nitidez é breve e não tem força suficiente para nos tranquilizar, mas estamos aqui. A noite, inevitável, à espera, mas avançamos e estamos aqui. 

 

 

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro 2014)

 


5 comentários

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De carina a 08.01.2014 às 15:50

Gostei muito...senti especialmente a parte da casa que está ali imóvel ao tempo e à vida, uma testemunha inabalável e no no meu caso a casa que ainda retorno sempre, que ainda considero minha! O tempo que não perdoa e que (nos) vai mudando! Continuação!
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De Sofia Saldanha a 08.01.2014 às 16:29

Triste, o que sentimos, mais real e forte do que imaginamos, tornando verdadeira aquela vida, que simplesmente se recolheu, naquele meigo espaço em que antes vivíamos e sentíamos no peito, sobretudo quando há uma morte inesperada.
As certezas são pequenas ao começar do dia, mas se existe tal relógio, do muito ou do pouco tempo, o tiquetaque é domador frente à impotência do ar que acolhe os que estão e os que foram. "Mas avançamos e estamos aqui"


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De Zelma Rabello a 09.01.2014 às 20:05

Oi, Zé Luis! Eu sou a Zelma, do Brasil, a que te deu o cinzeirinho amarelo. Faz muitos anos, muito mais que cinco, mas ele também está lá, apesar do tempo.
Tenho 66 agora e também ainda ouço as vozes dos meus e de vez em quando retomo cada detalhe da casa onde vivi com eles, percorro-os como se neles estivesse, cada tampa de ralo, cada grade, cada velha torneira e o batente da cozinha que dava para o quintal onde sempre me sentava sonhando.
Continuamos.
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De manuelacarneiro a 11.01.2014 às 21:17

Gostei,
a memória fará sempre parte do espaço que habitamos,
na vida que vivemos, sonhamos, no espaço que
bem ou mal somos verdadeiros
Cptºs
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De Marina Vieira a 27.01.2014 às 19:52

Caro amigo
Como me deliciei a ler a tuas palavras, o teus pensamentos.
Revi-me em ti, ainda mais agora que perdi a minha mãe. Lembro-me que na Terceira, melhor dizendo na Praia da Vitória em 2001, apresentavas o teu livro "morreste-me" e eu nesta altura pensava como seria doloroso, insuportável mesmo, perder o meu pai, ou a minha mãe, não iria aguentar. E nesta altura houve alguém que me disse: Não antecipes este sofrimento vive. E foi o que fiz, vivi intensamente todos os momentos, mas mesmo assim não foi suficiente. Sofro com a sua ausência, mesmo sentindo-a dentro de mim.
Como desejaria ter o dom da escrita para poder expressar o que sinto...Obrigada bjos Marina




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