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No dia 18 de Abril de 1990, acordei às cinco e meia da manhã. O after-shave do meu pai tinha um cheiro enjoativo. A minha mãe era muito mais gorda do que é hoje. Talvez o meu pai nos estivesse a apressar, isso já não me lembro. Lembro-me da sua voz.
Nesse tempo, quando saíamos, a nossa cadela vinha a correr atrás da camioneta pelas ruas da vila. Corria até o meu pai conseguir acelerar o suficiente, o que só acontecia quando chegávamos à estrada de Avis. A minha mãe olhava para trás e afligia-se. Depois, vínhamos a saber que, nesses dias, a cadela ia procurar a minha mãe aos lugares onde ela costumava ir habitualmente. Era assim que a minha madrinha sabia que tínhamos ido a algum lugar. No dia 18 de Abril de 1990, íamos a Lisboa.
Na época, a estrada que ligava a Aldeia Velha a Cabeção era de terra e tinha grandes buracos. A cada solavanco, pulávamos na cabine da camioneta. Era de noite, madrugada, e havia lebres que se atravessavam, disparadas à frente dos faróis. A minha mãe sobressaltava-se. A minha mãe era uma menina, nervosa. Íamos a Lisboa para ela tirar o sinal. Quando eu era pequeno, chamava-lhe "o cuzinho". Era um sinal que lhe crescera no peito, por baixo do pescoço. Ela não deixava que ninguém lhe mexesse. Quando alguém se aproximava para tocar-lhe num fio ou perto do pescoço, ela tinha o gesto automático de proteger o sinal.
Num instante, a camioneta acertou numa lebre. O meu pai saiu e eu saí atrás dele. A lebre, estendida sobre a terra, estava quase morta, respirava depressa, era um bicho ferido e desconsolado. O meu pai levantou-a no ar pelas orelhas e acertou-lhe por duas vezes com o punho fechado por detrás da cabeça. Fui buscar um saco de plástico e guardamo-la atrás do banco. Estava boa para comer.
A minha mãe não concordou. Enquanto protestava, eu e o meu pai partilhávamos alguma coisa que era maior do que o silêncio. O dia haveria de começar a nascer. Lisboa aproximava-se de nós. A minha mãe temia pelo sinal porque tinha aparecido sem aviso e, ao longo dos anos, tinha crescido, tinha mudado de cor. Quando o médico lhe disse para o tirar, conformou-se.
No dia 18 de Abril de 1990, Lisboa era maior e muito mais confusa. Tinha mistérios. Era já de manhã quando estacionámos nas traseiras do Hospital Curry Cabral. A minha mãe despediu-se de mim e eu, sem palavras, desejei-lhe boa sorte. O meu pai acompanhou-a. No rádio da camioneta, sintonizei um posto onde falavam do Benfica. Entretive-me a ver passar os comboios e foi nesse tempo que comecei a ter comichão.
Quando o meu pai voltou sozinho, foi ele que descobriu que eu tinha as pernas cheias de pulgas. A lebre. Quando o corpo arrefeceu, as pulgas começaram a abandonar-lhe o pêlo. O saco de plástico foi fraco protector. Juntos, tivemos de esfolá-la ali, nas traseiras do Hospital Curry Cabral. Tive de despir as calças e o meu pai catou-me as pernas. Não sei onde a minha mãe estava, imagino que estivesse anestesiada, num lugar branco.
À hora de almoço, estava pronta, mas um pouco despassarada. Tinha um penso no lugar do sinal. Pedi-lhe que me mostrasse, mas não quis. Apanhámos o metro e fomos comer um frango ao Bonjardim, nas Portas de Santo Antão. O meu pai pedia sempre picante. Eu e a minha mãe bebíamos coca-cola. A minha prenda nesse dia foi um alfinete com o emblema do Benfica.
A camioneta sentiu alívio ao ver-nos. Ainda estava estacionada no mesmo sítio, à nossa espera. Atrás do banco, dentro de um saco de plástico novo, estava a lebre esfolada. Fizemos o caminho de volta, cheios de Lisboa. As estradas, as histórias do meu pai, a fonte onde parávamos sempre para beber água. Horas depois, quando chegámos a casa, a nossa cadela estava à porta. Quando viu a minha mãe abanou a cauda amputada e mijou-se às pinguinhas. Era uma cadela muito sentimental.
Ouvi o relato no meu quarto, numa telefonia verde que tínhamos. A menos de dez minutos do fim, o angolano Vata marcou um golo espectacular com a mão. No Estádio da Luz, o Benfica apurou-se para a final dos clubes campeões europeus. Tive vontade de ir ao terreiro, mas já era tarde. Em vez disso, apanhei alguma coisa bicuda e marquei a data de 18 de Abril de 1990 na parte de trás do alfinete com o emblema do Benfica, o mesmo que agora seguro na palma da mão.
José Luís Peixoto, in Abraço
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