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Após uma viagem longa, após semanas ou meses, quando se chega, assim que se põe um pé fora do aeroporto, estranha-se as cores, estranha-se a espessura do ar, estranha-se que, de repente, toda a gente fale em português. Os taxistas falam em português, a rádio passa publicidade em português, os cartazes ao longo do caminho anunciam qualquer coisa em português. Mas, nos passeios, as pessoas avançam sem reparar em nada, fazem o seu caminho, seguem sem encontrar novidades. Nos semáforos, os motoristas dos outros carros estão mal-humorados, ignoram completamente o sol de junho, que não é demasiado quente, ignoram a claridade e a temperatura perfeita.
A casa está exactamente como ficou. Se houve uma última caneca que ficou por lavar no lava-loiças, continua lá, suspensa, pronta a retomar o movimento do mundo. Então, antes de desfazer a mala, apetece sentar no sofá, senti-lo. Nos próximos dias, haverá prazeres simples para apreciar: assistir a matinés de fim de semana na televisão, tomar duches quentes com champô de tamanho normal, comer certas comidas, não necessariamente bacalhau. Essa fase pode demorar bastante tempo. Se houver disponibilidade, pode demorar vários dias. A mala pode ficar por desfazer durante mais de uma semana.
Então, a casa é mesmo casa. O corpo recupera segurança, como se a segurança fosse gasolina, como se a casa fosse uma bomba de gasolina e como se tivéssemos um depósito interno para atestar de segurança. A casa é como aquele lugar em que não podíamos ser apanhados quando brincávamos à apanhada. A casa é como um abraço.
Esse período pode ser muito reconfortante e melancólico. Reconfortante porque todas as lembranças e cicatrizes assentam, são processadas pela memória, narradas a nós próprios devagarinho, encontram um lugar na organização da cabeça. Melancólico exactamente pelo mesmo motivo. Esse é um período em que se contempla um tempo que, ali, se sabe com muita certeza que não voltará. Saber que aquilo que foi bom existiu é, também, saber que já não existe.
Sem roaming, é possível telefonar aos amigos com especial facilidade. Quando atendem e quando têm conseguem encontrar uma hora nas suas agendas cheias, marca-se um encontro numa esplanada ou à frente de uma paisagem simpática. Cresce então o entusiasmo para lhes contar como foi nadar ou andar de bicicleta numa cidade tão distante, entre imagens tão incríveis, entre perfumes e fedores. Eles ouvem, dizem: ãh, ãh. Reparam em qualquer coisa que está à acontecer atrás de nós, uma criança, um cão, um pombo. E o entusiasmo vai esmorecendo. Quando morreu completamente e se misturou com a paisagem, são esses amigos que se entusiasmam a perguntar: sabes com quem é que o Manel anda? E começam a falar dos lugares onde se costuma ir. Todo o interesse que colocam nos detalhes dessa descrição contrasta com o desinteresse com que se ouve. E há uma voz interior, por baixo dessa, a ditar pensamentos e a anotar tudo isso. Nesse preciso momento, fica claro que mudámos enquanto pessoa. Foi a viagem que nos mudou.
José Luís Peixoto, in revista Volta ao Mundo (Julho de 2012)
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