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Amor burguês

18.01.12
 

 

 

Havemos de engordar juntos.

 

Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.

 

As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.

 

É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.

 

Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.

 

As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.

 

Havemos de engordar juntos.

 

Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.

 

Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.

 

E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.

 

Nós acreditávamos.

 

Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho. 

 

 

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro, 2012)



 


66 comentários

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De Alberta Marques Fernandes a 18.01.2012 às 20:12

simplesmente soberbo! parabéns e um beijinho
Alberta
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De Rocío Ramos a 18.01.2012 às 20:25

Me encanta como escribes.
Compré "Abraço" la semana pasada en Porto y tengo muchas ganas de empezarlo (en breve, cuando sea para disfrutarlo con calma).


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De maria chiu a 18.01.2012 às 20:29

Engordar sozinho, até que nem é muito mau..............
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De Herminia a 18.01.2012 às 20:39

Bravo a este texto tantas vezes pensado "em voz muito baixinha" à distância de uma placa de "cliente seguinte"...
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De Afectos a 18.01.2012 às 21:01

...eu também acreditei...
A diferença é que você tem a expectativa de engordar sózinho, eu não quero nem estou preparada para me deixar ir...

Não se renda...deixe-se conquistar, devagarinho e sem pressas, e quando der por si estará a escrever soberbos poemas de amor (e)terno e (in)temporal...

Entretanto, escreva muito. Isto dos escritores é um bocado como os cantores, as melhores obras nascem de rescaldos de mau amor. Na dor somos Grandes, na paixão eternos...

Gosto muito de o ler.

(P.S. O tempo cura...)

XXX
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De emiliacastilho@sapo.pt a 18.01.2012 às 21:40

Posso estar sozinha no sofá e não mudo constantemente de canal. Posso até andar ao frio e à chuva porque me apetece estar sozinha. Creio que quem não sabe estar bem sozinho, também nunca vai estar bem acompanhado.
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De Vica a 18.01.2012 às 23:00

Engordar sozinho não tem a mesma graça. Melhor continuar magro enquanto estiveres sozinho. :)
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De Briseis a 18.01.2012 às 23:53

Que delícia, José Luís! Prometo que vou começar a contemplar esses momentos no supermercado! E, como só engordo muito dificilmente, vou ficar à espera de alguém que seja estranho, como eu. Para ficarmos magros e engelhados juntos, sem destoar. =)
Abraço
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De Antonio Nogueira a 19.01.2012 às 00:07

Totalmente de acordo. Lindo texto
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De Marina Barbosa a 19.01.2012 às 10:01

Quase todos as semanas dou uma vista de olhos no seu blog cheia de ansiedade na expectativa de encontrar um novo post , e apesar de adorar tudo o que escreve, de já ter lido todos os seus livros nunca me atrevi a deixar nenhum comentário, afinal de contas o que posso eu, uma simples mortal escrever para José Luis Peixoto.
Contudo, com este post não resisto a agradecer-lhe, porque este é um bocadinho da minha história, este também é um bocadinho meu...
Obrigado por partilhar tamanho dom comigo e com o resto do mundo

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