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DESMANTELAMENTO DE UM RIO
 
 

Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho,
como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.

 

 

 

poema de José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis

 

 

 


7 comentários

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De Mariana Martins a 22.04.2012 às 13:49

Queridíssimo José Luís Peixoto,

sou leitora recente de sua obra e já estou encantada pela sua escrita! Tenho frequentado o seu blog, mas nunca havia comentado sobre nada - não sei o porquê -, porém essa imagem de desenhos infantis na parede me tocou profundamente. Minha mãe mantem até hoje riscos meus (que já estou com 28 anos) e de minha sobrinha caçula... São memórias que não devem ser apagadas, riscos eternos em nossos corações...

Tudo que escreves me deixa sem ar e isso é maravilhoso! Espero profundamente poder ver-te na Flip quando vieres ao Brasil...

Sem mais delongas, receba um abraço afetuoso de uma admiradora brasileira.

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