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DESMANTELAMENTO DE UM RIO
 
 

Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho,
como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.

 

 

 

poema de José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis

 

 

 


7 comentários

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De Estela Fonseca a 05.01.2012 às 01:20

Leio sinto e olho esse quadro de palavras feito!
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De Joaquim do Carmo a 05.01.2012 às 20:16

Em cada "Gaveta", maravilhas a descobrir!
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De Afectos a 06.01.2012 às 19:31

Li este seu texto ontem...fiquei com um nó na garganta e um sapo no estômago, nem soube o que lhe dizer ou se dizer...

Mas resolvi dizer-lhe que isto é o que eu estou a passar neste momento. Com os desenhos, as caixas, o filho multiplicado por 2, o sofá a manta, os livros...e pensei que quem (d)escreve assim esta situação terá seguramente passado por ela...

A pergunta e a questão, pelo menos para mim, é: e passa?
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De Tânia a 13.01.2012 às 10:02

Eu sei que não tem a ver com este post , mas vou aqui elogiar a crónica que veio na revista Visão de ontem (12/01)... espantosa crónica...tão simples e tão espantosa... como todas as palavras, com sentimento, que este nosso escritor usa para compor frases que depois se transformam em textos, textos que se gravam, por uma, outra ou diversas razões, na nossa alma... porque chegam à alma...acredito que vou engordar sozinha, porque tive e perdi, e sinceramente nem me preocupo em encontrar mais... mas se engordar sozinha com a alma confortada por textos intensos e cheios de sentido como os que o José Luís Peixoto nos oferece, já engordo bem mais feliz!
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De joaomchap a 14.01.2012 às 03:44

gostava de não ter gostado.
e há indiferença fui um incapaz.
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De Ana a 03.02.2012 às 19:02

Na TV ouço falar da crise e na minha estante vejo os poemas do Torga e desta Gaveta de Papéis e penso que na verdade sou rica e Portugal milionário :)
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De Mariana Martins a 22.04.2012 às 13:49

Queridíssimo José Luís Peixoto,

sou leitora recente de sua obra e já estou encantada pela sua escrita! Tenho frequentado o seu blog, mas nunca havia comentado sobre nada - não sei o porquê -, porém essa imagem de desenhos infantis na parede me tocou profundamente. Minha mãe mantem até hoje riscos meus (que já estou com 28 anos) e de minha sobrinha caçula... São memórias que não devem ser apagadas, riscos eternos em nossos corações...

Tudo que escreves me deixa sem ar e isso é maravilhoso! Espero profundamente poder ver-te na Flip quando vieres ao Brasil...

Sem mais delongas, receba um abraço afetuoso de uma admiradora brasileira.

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