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Devagar, aproximo a colher, oblíqua, do centro do prato. Por um instante, a circunferência de caldo e a colher formam um exemplo geométrico, são como a ilustração de ângulos num manual de matemática. Sinto o cheiro a conforto morno, a casa, a bem-estar, a inverno agasalhado. Abro caminho com a ponta da colher entre fios de couve, finos e embaraçados como ninhos de pardais. Quando a colher já está cheia e a levanto, não penso em mais do que na sua própria imagem. Fixo-a como se já lhe soubesse o sabor. Confirmo o melhor desse conhecimento no fim do gesto. Caldo verde. Fecho os olhos por um momento.
Após esse momento, o mundo reaparece. A minha mãe dá voltas à mesa. Tem pressa talvez por não querer que este tempo acabe. A sua imagem pisca de um e de outro lado da mesa. Antes de eu chegar, eu sei que a minha mãe enrolou folhas de couve na mão. Aproximou-as das lâminas do aparelho de ferro que as cortou em fios, a rodar por meio de uma manivela, preso à mesa por um grampo. Tenho essa memória desde pequeno, o som das folhas grossas de couve a serem cortadas, a sua cor verde-escura e o seu cheiro fresco, também verde. A voz da minha mãe mistura-se com o sabor da sopa. Diz-me: sabes quem é que morreu? Não sei, mas quero saber. Então, a minha mãe perde a pressa. Faz uma pausa para dar dois ou três passos, que se ouvem chinelados no chão. Dentro de mim, preencho esse silêncio com uma sucessão de rostos da minha infância.
Foi o Ti Zé Rente-às-Orelhas, diz a minha mãe. Quem? A minha mãe tenta explicar melhor: foi aquele homenzinho que morava na entrada da Devesa, vizinho do Mané Fãfã, o viúvo da Ti Chica Estreita. Eu conheço esses nomes, já os ouvi muitas vezes no meio de conversas, mas não estou a ser capaz de identificá-los. A minha mãe escandaliza-se: não sabes quem é o Mané Fãfã? Andaste à escola com dois sobrinhos dele, os filhos do latoeiro, o Armindo e o irmão mais novo do Armindo. Esses conheço bem: sim, claro, os filhos do latoeiro. O Mané Fãfã é irmão do latoeiro? Não, responde a minha mãe, o Mané Fãfã é irmão da mulher do latoeiro, a Rosalinda. Lembro-me dessa mulher, chegou a dar-me pão com mel quando brincava com os seus filhos, mas não sabia que tinha irmãos. Afinal tem, à farta, a minha mãe explica-me que essa mulher é a única rapariga de cinco filhos. Outro irmão dela é o Raposo. Até que enfim: ah, o Mané Fãfã é irmão do Raposo? Assisti-lhe a muitos jogos de sueca. Coitado. Que idade tinha? A minha mãe diz-me que não foi o Mané Fãfã que morreu, foi o seu vizinho, o Ti Zé Rente-às-Orelhas, um homem magro, solteirão, com mais de noventa anos, muito bem falante, mas bastante mouco. Morreu a ver a telenovela.
Não lhe recordo o rosto e, no entanto, consigo imaginar esse homem como se adormecesse, a merecer descanso. Digo: só me lembro do Mané Fãfã ter uma vizinha, aquela mulher maluca, despenteada, despassarada, a Violante. Com paciência, a minha mãe explica-me: essa é a vizinha de um lado. O Ti Zé Rente-às-Orelhas era o vizinho do outro lado.
José Luís Peixoto, in revista UP (Dezembro, 2011)
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