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O BARULHO QUE SOU
Não tínhamos baixista, mas nunca sentimos a sua falta. Durante meses não tivemos baterista. Esse sim, era falado, passávamos tardes inteiras a imaginá-lo. Mas essa ausência não nos atrasou, gravámos a primeira demo tape sem baterista: duas guitarras eléctricas e voz. Depois disso, não era possível o regresso ao nada e, durante alguns meses, tivemos um baterista que não tinha bateria e que não sabia tocar bateria. A sua primeira qualidade era ouvir o mesmo tipo de música que nós. Mais ou menos, claro. No caso de alguém perguntar pelas nossas influências, todos tínhamos um conjunto de bandas diferentes para responder, uma lista. Na escola, depois de muito, conheci um amigo do Índio que tocava bateria, que tinha bateria e que gostava de Grindcore. Eram os inícios dos anos noventa, era o século vinte, era o interior do Alto Alentejo e seria bastante curioso se alguém das matemáticas calculasse as probabilidades de ter acontecido aquilo que aconteceu.
O Índio era um dos colegas de turma com quem, nos anos oitenta, trocava cassetes nos intervalos das aulas. Em toda a escola, entre mais de mil alunos, éramos quatro ou cinco. Partilhávamos toda a música pesada que conseguíamos encontrar. Heavy Metal. Quando algum enchia uma cassete gravada da rádio ou de alguém que tinha vindo de fora ou, muito raramente, quando alguém comprava um disco, partilhávamos entre nós. A nossa música era um segredo que quase ninguém tinha interesse de conhecer. As poucas pessoas a quem passávamos os auscultadores, faziam caretas ao mínimo contacto com o som. Esse ainda não era o tempo do Grindcore, dávamos a ouvir bandas como: Iron Maiden, Motörhead, Metallica. Insistíamos para que ouvissem um pouco mais, mas era-lhes intolerável, não reconheciam melodia e diziam que era sempre igual. A palavra que mais utilizavam era "barulho". Fomo-nos habituando a essa decepção repetida. A música que nos elevava, que nos agarrava pelo centro e que levantava cada poro da nossa sensibilidade, era repugnante para quase todos. Essa característica era má e era boa. Era triste não dividirmos a intensidade dessa música com aqueles que eram importantes para nós, mas era bom, muito bom, o muro que essa música levantava entre nós e aqueles que agrediam a nossa adolescência. Todo o tamanho dessa música era um mundo sem eles.
Nesse tempo, sempre que faltava um professor, ia à papelaria e folheava a Metal Hammer até a saber de cor. Esperava toda a semana por programas de rádio onde ficava a conhecer bandas como os AC/DC. Esse entusiasmo preenchia-me os dias e, à noite, quando adormecia, sonhava com ele. Aos poucos, saboreando cada passo, ia destapando um universo. Com ele, crescia eu e crescia o meu cabelo. A minha mãe ouvia as mulheres na mercearia a comentarem-lhe o meu penteado e, por graça, oferecia-me uma recompensa de cinco contos. Eu queria que o meu cabelo crescesse depressa. Passou por todas as fases, incluindo a fase "jogador de futebol da América do Sul". Não era um cabelo bonito, mas era forte. Lavado todos os dias, encaracolado em canudos, dava para abanar enquanto ouvia cassetes no meu quarto. O primeiro objecto que comprei com o dinheiro que ganhava a trabalhar no verão foi, aos catorze anos, um gravador. Esse era o aparelho que enchia o meu quarto de música. Depois, aos dezasseis, passei o verão a trabalhar e a pensar na guitarra eléctrica que, no outono, comprei em Lisboa. Também um amplificador, também um pedal de distorção, claro.
O facto de eu tocar guitarra eléctrica diz um pouco acerca da qualidade musical da banda. Mas a banda tinha muitas outras qualidades. Ensaiávamos no quarto dos dois irmãos que partilhavam comigo a formação original. O mais velho tinha vivido em Inglaterra e tinha trazido alguns discos. Folheámos o dicionário para escolher um nome. Os critérios eram claros: queríamos uma palavra algo perturbadora e longa, com muitas letras. Chegámos a duas possibilidades: "Hipocondríacos" e "Arteriosclerose". Debatemos o assunto. Não me recordo dos argumentos desse debate, tenho pena. A banda ficou a chamar-se "Hipocondríacos".
Gravámos duas demo tapes, fizemos a primeira parte de um concerto de uma banda de Thrash Metal da margem sul, Brain Dead, e escrevemos o nome "Hipocondríacos" em dezenas de mesas da escola. Respondemos a um número grande de entrevistas em fanzines de fotocópias, enviámos cassetes para países como a Polónia, a Suíça, os Estados Unidos, o Brasil e muitos outros. Ainda hoje me pergunto o que pensariam esses coleccionadores de música pesada no momento em que ouviam aquelas cassetes, gravadas no quarto dos irmãos. Só muito dificilmente poderiam imaginar as ruas que eu atravessava para chegar ao ensaio, as paisagens de hortas, as paredes de cal a lascar, os rebanhos de ovelhas com que me cruzava, os velhos que ficavam encostados ao cajado, admirados com o cabelo comprido, admirados com as calças de ganga manchadas com lixívia, admirados com as caveiras das t-shirts, os velhos a seguirem cada um dos meus passos, boa tarde, e a serem capazes de embaraçar-me as pernas com o olhar. Quatro ou cinco anos após o fim da banda, a minha mãe ainda recebia cartas endereçadas a "Hipocondríacos", chegavam de vários pontos do mundo e queriam trocar cassetes. Acreditamos que foi a primeira banda a tocar Hardcore/Grindcore em toda a região. Mais cedo ou mais tarde, alguém acabaria por levar o Hardcore/Grindcore ao Alentejo. No início dos anos noventa, século vinte, coube-nos essa honra. Soubemos e sabemos apreciá-la.
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