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A MÃO QUE ME FEZ

 

 

Uma tanganhada. Muitas vezes vi o meu pai estender a mão direita para crianças, até para mim quando era pequeno, e dizer: dá cá uma tanganhada. Havia um compasso em que as crianças se surpreendiam em silêncio, ficavam a olhar e, depois, devagar, estendiam-lhe também a mão.

 

Eu tinha três ou quatro anos quando, em horas paradas da tarde, uma mulher aflita atravessou as ruas da vila e o nosso quintal para dar a notícia que o meu pai tinha tido um acidente, uma máquina tinha-lhe arrancado a mão direita. A minha mãe não conseguia respirar. A mensageira era capaz de traçar com o dedo a linha na zona do pulso onde a lâmina lhe tinha acertado.

 

As máquinas da carpintaria do meu pai eram feitas do mesmo sonho que o levou a tentar terminar por correspondência um curso de desenho técnico. Essa força fazia parte da sua natureza e, quando se mostrava, era como um balão. Levantava um voo ligeiro, tranquilo, como se planasse sobre os campos. Eram imensas as paisagens que víamos através dos olhos do meu pai a sonhar, eram sem fim os horizontes que a sua vontade erguia. À hora de jantar, a minha mãe receava a realidade e tentava abrandar-lhe o optimismo, mas nunca conseguia completamente. O meu pai sonhava há muitos anos. Como prova, havia o livro que guardava desde rapaz em que se ensinava a fazer sabão e havia a história muito repetida da invenção que idealizara com o irmão mais velho: fazer gasolina a partir de cascas de laranja.

 

No pátio da carpintaria do meu pai, havia o barulho de máquinas. Havia a serra alta que atravessava troncos presos a um pequeno vagão que deslizava sobre carris. Havia motosserras com correntes de lâminas que, em certas ocasiões, se rebentavam e saltavam desgovernadas. No interior da carpintaria, havia mais máquinas. A rotação das suas lâminas hipnotizava. Eram máquinas que, ao atravessarem ripas, gritavam sons nasais. Lançavam jorros de maravalhas e um nevoeiro de serradura que enchia toda a carpintaria, que se respirava. Foi numa dessas máquinas que o meu pai teve o acidente.

 

Nessa tarde, a minha mãe esteve mais de duas horas submersa em angústia, a imaginar imagens de sangue, até ligarem do hospital para o telefone da vizinha e se saber que não tinha sido assim. O meu pai tinha tido um acidente com uma máquina, tinha sido grave, mas não tinha perdido a mão e havia esperança de que pudesse voltar a usá-la.

 

Afinal, a lâmina não lhe tinha cortado o pulso, mas sim a palma da mão e a cabeça de alguns dedos. Depois de tirar as ligaduras, a mão foi cicatrizando. Havia um aparelho feito de alumínio e molas, com partes em cabedal para prender o antebraço e os dedos. Esse aparelho servia para recuperar um pouco da forma da mão. Forçava os tendões, era doloroso. Anos depois, quando eu o encontrava abandonado dentro de algum armário, brincava com ele. Parecia a mão de um robot.

 

O meu pai e os homens que trabalhavam com ele na carpintaria aleijavam as mãos a cada passo. Nenhum se queixava demasiado quando entalava os dedos entre chapas de madeira ou quando lhes acertava com uma martelada e ficava com as unhas negras, sangue pisado. Era incontável o número de lascas de madeiras que se espetavam nas suas mãos ou a quantidade de vezes que os formões ou os serrotes deslizavam e lhes faziam cortes até ao osso. Se não bastasse soprar ou enrolar a mão num lenço de assoar, havia um armário branco, coberto de pó, entre calendários de mulheres nuas, 1979, 1985, 1982, onde havia álcool e, às vezes, algodão.

 

Numa ocasião em que estavam a descarregar pinheiros no pátio, houve um tronco que esmagou o mão de um homem. A aliança de casado cortou-lhe o dedo. Foi o meu pai que o recolheu num frasco e que conduziu o homem até ao hospital. Contava sempre essa história como justificação para não usar aliança.

 

O meu pai conseguia segurar em tudo, fazer tudo, mas o corte enrolou-lhe a mão direita, encaracolou-lhe os dedos e nunca conseguia abri-la completamente. As unhas cresciam à volta da cabeça dos dedos mindinho, anelar e médio, que eram menores do que o seu tamanho natural. Era essa mão, de pele grossa e áspera, que o meu pai usava para fazer acções melindrosas, pentear as sobrancelhas, contar moedas. Era essa mão que usava para fazer festas no rosto terno das netas. Era essa mão que me dava quando íamos à cidade, passeávamos juntos e acreditávamos que o tempo não tinha fim. 

 

 

José Luís Peixoto, in Abraço (Quetzal, Outubro 2011)

 





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6 comentários

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De meldevespas a 21.11.2011 às 10:44

Não sei que idade tem o José luis, mas ainda assim, e apesar de o meu pai não ter sido carpinteiro, este conto trás-me de volta o cheiro da minha infância, deve ser o efeito desses sonhos de que fala, que tão bem reconheço, ou a forma como o mundo inteiro cabia dentro da familia e transbordava em segurança por causa disso, ou então o carinho que põe nas palavras. Confesso que ainda não li nada seu, a não ser aqui e ali como agora, mas cada vez mais compreendo a paixão que a minha filha mais velha tem pela sua escrita. É evidente a razão. Obrigada por este bocadinho
Carmo Fernandes
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De tsiwari a 21.11.2011 às 10:57

Sempre bom ler-te.
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De Kátia Suelotto a 21.11.2011 às 11:46

Querido, não sei o que dizer, porque é lindo demais.
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De Tânia a 21.11.2011 às 12:16

O livro "Abraço" é simplesmente espantoso...tenho-o lá, na minha mesa de cabeceira, e nunca me deito sem ler algo dele... se estou muito cansada fico-me por dois ou três textos, se o sono não me vence o meu tempo rendesse àquelas palavras... posso dizer que já vou a mais de meio livro e muitas vezes reli alguns dos textos, quando eles me fazem "cócegas" na alma...porque o José Luís Peixoto tem essa capacidade extraordinária de nos fazer sentir o que lemos... e muitas vezes parece que somos nós naquelas palavras, naquelas frases... muito bom.
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De Yollande D'Artout a 21.11.2011 às 16:31



Isso ! É o melhor do tempo. Às vezes passa, às vezes, para.
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De Cristina a 23.11.2011 às 21:02

Sinto tudo o que escreves. Sem dificuldade consigo imaginar-te a escrever. Sinto a energia com que carregas as palavras. Ao ler-te, sinto. E por isso nunca vou deixar de o fazer. Não és dos meus escritores favoritos, és O favorito. Obrigada!

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