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Os professores

11.11.11
 

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objetos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos atualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

 

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efetiva. O trabalho dos professores é a generosidade.

 

Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O ato que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.

 

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.

 

Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.

 

Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.

 

Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.

 

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Outubro, 2011)

 

 


13 comentários

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De Olinda P. Gil a 11.11.2011 às 16:34

Não tive acesso nem conhecimento deste texto publcado na revista Visão. É com muita felicidade que o leio, agora, no blog. Como professora, obrigada.
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De Marco a 11.11.2011 às 16:43

fantástico texto
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De Maria Diogo a 13.11.2011 às 17:18

José Luís

Sou a que levou à apresentação do LIVRO uma pasta cheia de todos os seus livros.
Foram autografados como se no dia da apresentação de cada um se tratasse, admirei o facto… admirei até, que em cada um deles me olhasse nos olhos adivinhando assim, como senti cada um. Esperei este ABRAÇO que finalmente chegou e que mais uma vez me faz recuar à minha infância o que me agrada bastante tal a intensidades das memórias desse tempo e da sua maneira de recordar-mo.
Já tinha lido “OS PROFESSORES” na revista Visão, nem surpreendida fiquei que de “nós” assim escrevesse. Obrigada.
MZD
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De Anónimo a 14.11.2011 às 16:25

Digitalizei este texto, que veio na revista Visão, e enviei por e-mail aos meus contactos, e como muitos são professores, ficaram verdadeiramente "encantados", como se tivessem sido presenteados com algo raro... porque, infelizmente, nos dias de hoje é raro ter a lucidez de distinguir com tanta "classe" uma profissão nobre como a dos professores... e é como eu digo: só podia ser este escritor!!! Parabéns por mais uma composição espantosa!
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De Anónimo a 15.11.2011 às 19:45

Tão bem dito...
Tão bonito!
Hoje, estou reconhecida!
Bem Haja

Catarina Subtil
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De Andy a 20.11.2011 às 11:59

Não sou professora. Mas sou a aluna constante da vida, da escola e da academia... Não se fala apenas de professores, soa-me a mais alegria e mais vida! A esperança que muitos tentam abafar!
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De Fatima Santos a 11.05.2012 às 12:29

Sou educadora de infância, já aposentada. O que li e reli é exactamente o que sempre esperei ver escrito e porventura todos os educadores e professores pensam e falam! Muito obrigada por esta "verdadeira homenagem", tão vivida, tão sentida...
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De Luísa Lemos a 11.05.2012 às 12:31

Infelizmente só hoje tive conhecimento deste texto. Li com delícia e agrado as boas palavras que tão bem retratam a minha profissão. Também concordo com todos os sentimentos que enuncia e agradeço a forma tocante como descreve aquilo que ainda hoje sinto pelos meus alunos e aquilo que os meus professores fizeram por mim. Agradeço-lhe sentidamente, já que quando li o seu texto percebi que nem toda a gente desconhece os sacrifícios e o amor que se coloca nesta profissão. Hoje sinto-me mais feliz, mais realizada, capaz de realizar outras empresas. Bastaram as suas palavras para dar o ânimo que por vezes sentimos faltar. Obrigada por tudo, este dia já valeu por esta leitura.
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De Joao Manuel de Abreu Pereira a 11.05.2012 às 15:18

O José Luís Peixoto é na verdade um escritor para além da média. Ele sabe usar as emoções! só por isso lhe auguro um excelente futuro, é um homem humanamente evoluído, um não robôt , o oposto da maioria que anda para aí.
Apreciei o seu texto sobre professores, quase que fiquei envergonhado quanto à forma como penso deles mas sempre pensei assim! Não há dúvida, um homem sem memória nunca se consegue ver por inteiro. Os professores, tal como os pais representam essa memória, a sua história pessoal. Mas eu, mesmo assim, continuo a ver os professores como um degrau, no N/ caminho da vida, um ponto de apoio sobre o qual poderemos dar novo passo. Eles só por si nunca poderão representar a verdade completa nem a perfeição no pensar. Que me desculpem as minhas dúvidas, sempre os questionei, mas sou assim.
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De isabel a 12.05.2012 às 17:51

Apesar de já estar aposentada, continuo a sentir tudo o que gira à volta de Educação/Ensino como se continuasse no activo... Sofro, quando a Sociedade ataca os seus Professores, em geral, e comovo-me, quando estes são alvo de manifestações de reconhecimento ou de afectos...
Agradeço este artigo...
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De Jesús Carrera a 11.05.2012 às 20:13

José Luís Peixoto, desculpe estar a incomodá-lo e desculpe pelo que vou dizer agora, mas eu não pude ficar quieto e simplesmente ler estas palavras. Tenho 16 anos e acho que não é tudo inteiramente verdade.
Não estou a dizer que os professores não tenham mérito por sermos o que somos, mas todos os dias eu vou para a escola a pensar que algum dia os professores vão começar a aprender alguma coisa connosco, e tudo continua igual.
Os professores só querem avaliar os alunos pelo que sabem e não por quem são. Por exemplo, um dos professores da minha escola já se sentou num café a falar comigo durante uma hora e disse-me que sinceramente eu sou uma boa pessoa e que ajudo todos à minha volta mas o meu interesse pela escola é relativamente algo superior a nada.
Na minha aula à alunos que só chateiam outros e que depois querem ter carreiras brilhantes mas eles não ajudam quase ninguém e não deixam a maior parte dos alunos aprender. Eu pelo contrário sou um aluno de insuficientes, mas sento-me no fundo da aula a escrever coisas minhas a pensar que algum dia possa ser um grande escritor e doar uma parte considerável dos meus lucros à caridade ou a pessoas que precisem mais do que eu e ao contrário dos meus colegas eu fico calado sem chatear ninguém deixando aprender todos os que querem.
Mas agora o que eu também digo aos professores é que oiçam mais os alunos, oiçam as suas opiniões sobre a escola e sobre a vida, porque à sempre algum aluno solitário que tem uma resposta brilhante para qualquer pergunta sobre a vida. Eu acho que nesta vida todos somos professores, logo à nascença ensinamos os nossos pais, e depois quando crescemos ensinamos os nossos amigos, as nossas namoradas/os, e por ai, até que finalmente aparece um filho nosso e começamos a aprender também com ele.
Em conclusão quero dizer que todos somos professores e alunos, jovens e idosos, crianças e adultos, e a maior recompensa que podemos ter por esse trabalho é deixar que outros também nos ensinem.
Obrigado por lerem e desculpem mais uma vez o incómodo

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