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Senhora professora, amanhã, vou com os meus pais à Madeira, dizia eu na véspera. De bata às riscas, andava num ano qualquer entre a primeira e a quarta classe. A professora olhava para mim, conhecia-me bem, recebia essa informação e acenava com a cabeça como se estivesse a dar consentimento.
No dia seguinte, acordávamos muito cedo. Quatro e meia, cinco da manhã. Os meus pais acordavam antes de mim. Na cozinha, vestido com roupas novas que picavam, com sapatos apertados, eu era acordado pelo frio da madrugada, as orelhas geladas, pela luz das lâmpadas amarelas. A minha mãe levava com ela um cheiro enjoativo a laca e tratava das muitas tarefas misteriosas que tinham de ser feitas antes de sairmos. Nesse tempo, eu conhecia a camioneta do meu pai pelo barulho do motor. Era esse barulho que enchia a rua.
E, por fim, sentados uns ao lado dos outros, eu no meio, partíamos. Em algum momento, ao som da telefonia, a manhã começava a nascer sobre os campos. Esse era o tempo das estradas más, era o início dos anos oitenta, estradas de curvas e buracos. À nossa frente, estava um caminho longo, não lhe víamos o fim, mas tínhamos tempo para conversar e a paisagem estava sempre a mudar à nossa volta. Nas descidas, atingíamos os oitenta quilómetros por hora. Além disso, parávamos em fontes que o meu pai conhecia. Água fresca.
O almoço, claro, era um grande acontecimento. Com a importância do menu na mão, escolhíamos entre aquilo que não tínhamos costume de comer em casa. Fazíamos experiências. Provávamos dos pratos uns dos outros. Eu tinha direito a sobremesa.
Voltávamos à camioneta com uma forma diferente de andar, lenta, satisfeita, e continuávamos o nosso caminho. A suspensão pouco ágil ajudava à digestão. Eu admirava-me com as paisagens e recebia explicações dos meus pais. Chegávamos à Madeira a meio da tarde. O meu pai estacionava a camioneta. Eu e a minha mãe esperávamos.
Escrevo estas palavras no quarto andar de um hotel em Los Angeles. Quando olho pela janela, vejo uma zona chamada Koreatown, onde quase tudo - cabeleireiros, restaurantes, ginásios - é coreano. Nas fachadas dos edifícios, há cartazes em coreano e, em grande parte deles, não se chega a perceber o que anunciam. A maioria das pessoas que, lá em baixo, caminha nos passeios é de origem asiática. E, no entanto, as avenidas - Wilshire, Western - são ladeadas por palmeiras enormes. Os helicópteros sobrevoam constantemente a cidade.
As viagens que faço hoje tentam ser aquelas que, há trinta anos, fazia com os meus pais. As viagens são aquilo que formos capazes de aprender, de acrescentar ao nosso mundo. As viagens somos nós próprios. Eu e os meus pais partíamos do Alentejo e chegávamos perto de Aveiro. O meu pai tinha uma oficina de carpintaria e fazia essa distância para encomendar madeira que seria, mais tarde, entregue por camiões. Além da viagem em si e do almoço, eu e a minha mãe dispúnhamos de pouco mais de uma hora para fazer compras e passear. Aproveitávamos bem esse tempo.
Reparei agora que, antes, escrevi "madeira" com maiúscula. Na altura, andava entre a primeira e a quarta classe, era-me normal fazer erros desses. Mas, neste caso, talvez não tenha sido erro. Por um lado, era assim que nós dizíamos e, por outro, a ilha da Madeira foi o destino da única viagem que o meu pai fez de avião.
José Luís Peixoto, in Volta ao Mundo (Abril 2011)
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