Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]




Senhora professora, amanhã, vou com os meus pais à Madeira, dizia eu na véspera. De bata às riscas, andava num ano qualquer entre a primeira e a quarta classe. A professora olhava para mim, conhecia-me bem, recebia essa informação e acenava com a cabeça como se estivesse a dar consentimento.

 

No dia seguinte, acordávamos muito cedo. Quatro e meia, cinco da manhã. Os meus pais acordavam antes de mim. Na cozinha, vestido com roupas novas que picavam, com sapatos apertados, eu era acordado pelo frio da madrugada, as orelhas geladas, pela luz das lâmpadas amarelas. A minha mãe levava com ela um cheiro enjoativo a laca e tratava das muitas tarefas misteriosas que tinham de ser feitas antes de sairmos. Nesse tempo, eu conhecia a camioneta do meu pai pelo barulho do motor. Era esse barulho que enchia a rua.

 

E, por fim, sentados uns ao lado dos outros, eu no meio, partíamos. Em algum momento, ao som da telefonia, a manhã começava a nascer sobre os campos. Esse era o tempo das estradas más, era o início dos anos oitenta, estradas de curvas e buracos. À nossa frente, estava um caminho longo, não lhe víamos o fim, mas tínhamos tempo para conversar e a paisagem estava sempre a mudar à nossa volta. Nas descidas, atingíamos os oitenta quilómetros por hora. Além disso, parávamos em fontes que o meu pai conhecia. Água fresca.

 

O almoço, claro, era um grande acontecimento. Com a importância do menu na mão, escolhíamos entre aquilo que não tínhamos costume de comer em casa. Fazíamos experiências. Provávamos dos pratos uns dos outros. Eu tinha direito a sobremesa.

 

Voltávamos à camioneta com uma forma diferente de andar, lenta, satisfeita, e continuávamos o nosso caminho. A suspensão pouco ágil ajudava à digestão. Eu admirava-me com as paisagens e recebia explicações dos meus pais. Chegávamos à Madeira a meio da tarde. O meu pai estacionava a camioneta. Eu e a minha mãe esperávamos.

 

Escrevo estas palavras no quarto andar de um hotel em Los Angeles. Quando olho pela janela, vejo uma zona chamada Koreatown, onde quase tudo - cabeleireiros, restaurantes, ginásios - é coreano. Nas fachadas dos edifícios, há cartazes em coreano e, em grande parte deles, não se chega a perceber o que anunciam. A maioria das pessoas que, lá em baixo, caminha nos passeios é de origem asiática. E, no entanto, as avenidas - Wilshire, Western - são ladeadas por palmeiras enormes. Os helicópteros sobrevoam constantemente a cidade.

 

As viagens que faço hoje tentam ser aquelas que, há trinta anos, fazia com os meus pais. As viagens são aquilo que formos capazes de aprender, de acrescentar ao nosso mundo. As viagens somos nós próprios. Eu e os meus pais partíamos do Alentejo e chegávamos perto de Aveiro. O meu pai tinha uma oficina de carpintaria e fazia essa distância para encomendar madeira que seria, mais tarde, entregue por camiões. Além da viagem em si e do almoço, eu e a minha mãe dispúnhamos de pouco mais de uma hora para fazer compras e passear. Aproveitávamos bem esse tempo.

 

Reparei agora que, antes, escrevi "madeira" com maiúscula. Na altura, andava entre a primeira e a quarta classe, era-me normal fazer erros desses. Mas, neste caso, talvez não tenha sido erro. Por um lado, era assim que nós dizíamos e, por outro, a ilha da Madeira foi o destino da única viagem que o meu pai fez de avião. 

 

 

José Luís Peixoto, in Volta ao Mundo (Abril 2011)


 



8 comentários

Sem imagem de perfil

De Alexandra a 20.05.2011 às 17:15

Lindo! Adorei! Agora é aguardar a próxima viagem.
Imagem de perfil

De magnolia a 20.05.2011 às 17:46

Continuo a ficar de olhos e coração colados ao que escreves. Sempre. Gosto tanto! :)

Cláudia Moreira
Sem imagem de perfil

De AnuskA a 20.05.2011 às 20:28

:)
Sem imagem de perfil

De Yollande D'Artout a 21.05.2011 às 16:34

Grafia: Ilha da Madeira e ilha das madeiras. Pois.
Escreves bem, muito bem, tv pq o menino que fostes, nunca te escapa. Isso se "vê". Raridades. Puro divertimento, traços de nostalgia. Desenvoltura.
Tive tb um pai que alem de cirurgião, lá no fundo, era pintor de telas, carpinteiro, vilolinista, pianista e cozinheiro. Sentava-se à máquina de costura pra arrumar as bainhas das calças, e nos falava dos passeios que fazia quando menino, com a familia, às quintas em Melgaço, no Minho, onde criavam-se peixes, tecia-se o linho, à Ilha da Madeira, onde compravam bordados.
Iam e voltavam de Navio.
Sem imagem de perfil

De Pau a 25.05.2011 às 20:58

"Era esse barulho que enchia a rua", eis uma frase simples a que faz com que percebamos como crianças. O barulho do motor a encher a rua e a memória. Importante por ser do pai, importante por ser única. A tua escrita é absolutamente mágica e melhora cada dia. Beijinho.
Sem imagem de perfil

De Tania Freitas a 30.05.2011 às 10:43

Desde a Madeira aqui vai um muito obrigada pela sua presença na feira do Livro do Funchal! Foi um prazer enorme ouvi-lo e poder constatar, na sessão de autógrafos , a simpatia, a humildade, a grandeza de espírito e de visão que possui! a sua escrita é encantadora, os seus livros são arte pura e fazem sempre parte dos meus dias e do meu tempo! Felicidades e mais uma vez: Obrigada!
Sem imagem de perfil

De antonio ganhão - o implume a 15.06.2011 às 17:14

Um deslizar pelas memórias e pela poesia, sonhei este texto e ao acordar ele ainda lá estava.
Sem imagem de perfil

De Joana Vidoeira a 28.11.2011 às 19:01

Quando um texto é bem escrito, tudo nos parece simples, transparente e luminoso. E fácil. Absolutamente maravilhoso! :)

Comentar artigo








Perfil SAPO

foto do autor