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Então, eu comia o Porto. Ali à beira do Douro, abria a boca e enchia-a com o Porto. Pousava-o sobre a língua e mastigava-o com cuidado, para não causar estragos na Torre dos Clérigos, no Pavilhão Rosa Mota ou na estátua do leão e da águia da Boavista. Os portuenses haviam de acreditar que o céu da minha boca era um dia de outono nublado e continuariam a fazer a sua vida normal, voltariam para casa à hora certa do relógio de pulso e os autocarros continuariam a subir e a descer os Aliados sem perturbação. O momento de engolir o Porto seria sereno para a cidade e, para mim, seria o instante em que a memória do seu gosto se tornaria efectiva. O Porto não saberia a molho de francesinha, muito menos a tripas ou a vinho doce, teria um gosto composto por múltiplo, intenso e contraditório, composto por perífrase, hipérbole e oximoro. Eu fechava os olhos, claro, para sentir analiticamente o gosto do Porto. Passava bastante tempo assim, o silêncio tinha vagar para rodear-me.
Sentia todo o caminho do Porto através da minha garganta. Haveria de lembrar-me de goles de água no verão, o fresco da água a descer por mim como uma onda de temperança. Nesse túnel, o Porto, com os seus estádios, com o mercado do Bolhão, haveria de fluir imperturbável, mais lento e justo do que um rio grande, atravessado por pontes de ferro projectadas por Gustave Eiffel. Eu não haveria de me engasgar com o Porto, nem sequer me lembraria dessa possibilidade, nem sequer a consideraria. Seria capaz de respirar grandes volumes de ar fresco e limpo, seria capaz de respirar uma tarde inteira ou, mesmo uma primavera inteira, uma infância inteira. Para o Porto, esse caminho no interior da minha garganta seria menos do que uma brisa. Talvez alguns portuenses, os mais sensíveis à humidade, subissem a gola do casaco por instantes, talvez quisessem cobrir o pescoço, sentir tecido na pele fina do pescoço. O carros continuariam a parar nos sinais vermelhos e a avançar nos sinais verdes, continuariam a encaracolar-se pelos caminhos do silo de estacionamento ou, na rua, continuariam a seguir as indicações de um arrumador com barba, vestido com casacos sobrepostos.
O Porto chegava-me ao estômago à hora certa do entardecer. A tranquilidade seria inquestionável. Todos os poetas da cidade haveriam de ter um acesso súbito de inspiração. O meu estômago não precisava de se dilatar, barrigada, para ser capaz de acolher toda a cidade num plano horizontal, nivelado ao milímetro pelos desníveis habituais das suas ruas e avenidas. Quem estivesse a descer até à Foz, continuaria passo após passo; quem estivesse a subir até ao Marquês, continuaria passo após passo. As gaivotas planariam voltas perfeitas dentro do meu estômago e, assim, seriam capazes de puxar a noite. Chegaria devagar, ao ritmo intermitente das luzes que se começariam a acender na Baixa.
Por acaso simbólico, a absorção começaria precisamente à hora de jantar. As casas, o ar, as ruas, os viadutos, as montras, os jardins, as pessoas, os carros, as palavras, a pronúncia, os monumentos seriam gradualmente absorvidos pelas paredes do estômago. Atravessá-las-iam como uma sombra que fosse progredindo sobre a cidade, como uma maré de nuvens que fosse tapando a lua e as estrelas, uma a uma. Todos os elementos sólidos e não sólidos da cidade, mesmo os invisíveis, transformar-se-iam em carne, na minha carne, no meu sangue a correr pelas minhas veias e a atravessar-me desde a ponta dos dedos, os mesmos que carregam nestas teclas, até às pequenas artérias que irrigam os meus olhos, o meu cérebro. O Porto seria oxigenado pelos meus pulmões, passaria pelo meu ventrículo esquerdo e, depois, pela aorta. A zona das Antas seria uma extensão da minha pele, a Sé também. Quando eu tocasse alguma coisa, quando segurasse um livro ou ouvisse uma canção, só seria capaz de fazê-lo através do Porto. Na verdade, nem eu próprio seria capaz de distinguir-me do Porto. Seria capaz de dizer "o Porto", seria capaz de dizer "eu", mas apenas o faria por preguiça analítica, por mecanismo desonesto de esquematização. Essa mentira seria fácil de desmascarar em cada palavra dita, escrita, em cada silêncio, porque se eu articulasse um som mínimo, seria o Porto que o estaria a dizer; se eu escrevesse uma letra, seria o Porto a escolhê-la; se eu permanecesse quieto, a olhar para a distância e a pensar em imagens de tempos passados, seria o Porto que existiria no meu lugar, a lembrar-se de dias, passados neste ou noutro século.
José Luís Peixoto, in Abraço
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