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Bicheza

18.11.10

Nós tínhamos cães, gatos, coelhos, galinhas, patos, pombos, ovelhas, porcos e vacas. Às vezes, também tínhamos outras qualidades de animais: canários em gaiolas ao sol, aquários de peixes sobre o frigorífico ou bichos da seda em caixas de sapatos. Também tivemos porquinhos-da-índia. Viviam numa coelheira e, um dia, os cães mataram-nos e comeram-nos. Deixaram só as cabecinhas, espalhadas pelo quintal, à espera de serem encontradas e recolhidas pela minha mãe.

 

Com catorze ou quinze anos, ao fim da tarde, eu chegava ao pátio da oficina do meu pai - os passos a desfazerem cascas de pinheiro, boas para esculpir pequenos barcos à navalha - e dirigia-me à meia dúzia de vacas que possuíamos. Mudava-lhes a água, deixava-lhes palha e uma medida certa de ração. As vacas tinham línguas enormes que me passavam pelas palmas das mãos, pelos braços, e tinham aqueles olhos cheios de tempo, como lagos.

 

Uma vez, o meu pai pediu-me para carregar e arrumar quatrocentos fardos de palha. Tinham sido deixados no pátio por reboques de tractor e precisavam de ser organizados no barracão. Olhando para aquela montanha desequilibrada, pareceu-me um trabalho impossível. Ao fim de dois dias, tinha as pernas feridas - a palha atravessava a ganga - e tinha as mãos feridas - os arames atravessavam as luvas - mas os fardos estavam todos arrumados no barracão e eu sabia que era capaz. Ainda hoje, guardo os pensamentos que tive durante esse tempo. Agradeço ao meu pai por essa força.

 

Quando as vacas ficaram prenhas, houve uma que, a partir de certa altura, ficou murcha, não se levantava. O vitelo não lhe tinha dado a volta na barriga. Olhava-se para ela e via-se o seu sofrimento. Calhou a ser num domingo. A cheirar a vaca, o meu pai foi pedir ao doutor que viesse vê-la, mas o doutor estava no clube dos doutores, de roupas lavadas, com direito ao seu descanso. Nessa noite, a vaca morreu. Esse animal constituía, precisamente, o lucro de toda a criação.

 

Também havia as pocilgas, que limpávamos periodicamente com enxadas que raspavam no cimento. As marranas chegavam a parir vinte leitões. Eram bichos valentes, de corpos pesados e olhos baixos, rodeadas por dezenas de filhos a guincharem. Às vezes, quando se largavam no chão para estender uma fileira de tetas, caíam em cima dos leitões, que sufocavam antes que a mãe se conseguisse levantar. Recolhíamos os mortos, segurando-os pelas patas de trás. Os porcos comiam ração e comiam tudo - grandes panelas de cascas de batata e restos de comida que a minha mãe aquecia ao lume em panelas de barro.

 

A tosquia das ovelhas era feita à tesoura. Na primavera, os animais saíam esguios e aliviados. Enchiam-se sacas de lã branca e castanha. As ovelhas pequeninas chamavam pelas mães com voz de criança. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, tínhamos um borrego bravio no quintal. Às escondidas, eu costumava saltar para dentro do redil para toureá-lo. Tiravam-me quando ouviam o meu corpo a bater de encontro às tábuas e ralhavam-me. Durante anos, a pele desse borrego esteve estendida no chão da nossa sala. A minha mãe pedia-me para tirar os sapatos quando brincava na sua superfície. De meias, sentia-me finalmente vitorioso.

 

Passava horas a observar as galinhas na capoeira, a tentar perceber as suas relações, a investigar com o dedo mindinho se tinham ovo. Além disso, as galinhas cacarejavam e os pombos davam grandes voltas no céu sobre a tapada. As ervas cresciam. Eu e o meu amigo Belarmino entrávamos na vacaria do Ti Mané Botas e ficávamos a vê-lo ordenhar as vacas ou receber as mulheres que chegavam com vasilhas de alumínio. Quando fervido, esse leite fazia uma nata grossa, que eu comia à colher. Ao fim do dia, eu e o Belarmino encostávamo-nos à parede quando o pai dele passava com o seu rebanho de centenas de ovelhas. Apanhávamos muitas vezes boleia nas carroças dos ciganos. Os velhos levantavam-nos pela cintura e montavam-nos nas burras. E passávamos horas perdidas no campo, a cruzarmo-nos com javalis, lebres e rolas. Conhecíamos o lugar dos ninhos de melros e de poupas, tínhamos todo o cuidado para que as mães não enjeitassem os passarinhos carecas. As gatas andavam aluadas e pareciam pessoas a uivar pelos quintais. Os cães aproximavam-se de nós para receberem festas na cabeça. Os morcegos circundavam os candeeiros da vila à noite. Tínhamos grilos em gaiolas e cágados escondidos debaixo dos sofás. A nossa vida era inseparável da vida deles. Era simples, dura e bonita.

 

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Novembro 2010)


 



17 comentários

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De Evanir Anselmo a 25.11.2010 às 23:04

Senhor José,que lindo!
Fiquei a imaginar cada cena,és tão jovem e vivestes uma infancia rica de emoções.
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De Agostinho Lopes a 08.12.2010 às 12:55

Era assim!
Já lá vão alguns anos, as nossas brincadeiras eram puras e inocentes, eram tudo o que está descrito neste excelente artigo que me fez reviver toda a minha infância onde eu me retrato fielmente. penso que toda a nossa juventude da era digital devia ler e meditar sobre isto. A vida era mesmo assim mas ainda com mais "atrativos", podia referir a fisga que era uma companhia inseparável, a construção dos carrinhos com as latas de conserva, as gaitas feitas de cana, até com a tripa de encher as farinheiras se faziam gaitas, os arcos com gancha que serviam para grandes corridas, a época do pião com todas as suas modalidades, etc.. Mais tarde os bailaricos na sociedade recriativa.
Era tudo isto que nos levava a viver esta vida simples, dura e bonita.
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De Susana a 21.07.2011 às 11:14

Tão próximo da minha infância.
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De Memyselfandi a 15.08.2011 às 20:06

Descrição deliciosa de um cenário que me é tão, mas tão familiar, nem imagina! Durante alguns anos, eu fui uma "menina" das que chegava à leitaria (que não era a do Ti Mané Botas, mas podia ser) com a tal vasilha de alumínio para buscar o leite que, depois de fervido, criava a tal nata. Meu Deus a viagem! =)
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De Ana Montez a 18.08.2011 às 18:01

Identifico-me muito com o que acabei de ler, faz-me lembrar a minha infância em que fui criada pelos meus avós .Não posso adiar mais não lê-lo José Luís.

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