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Estava na Alemanha, num encontro de escritores, e, todas manhãs, no pequeno-almoço do hotel, havia uma mesa de homens portugueses. Em voz alta, acreditando que ninguém os entendia, libertavam-se a contar as suas aventuras com prostitutas polacas e os seus negócios de Mercedes em segunda mão. Num desses dias, um deles apontou para a minha orelha e disse: olha para este, parece que caiu em cima de um monte de pregos.

 

Noutra ocasião, estava no Luxemburgo, também num encontro de escritores. Preparava-me para almoçar, conversava com um poeta holandês, enquanto dois homens iam servindo salada em todos os pratos da mesa. Um deles chegou perto de mim e, em português, disse ao outro: olha para este animal, tem o braço todo o sujo. Dessa vez, não fiquei em silêncio. Disse-lhe: por acaso, até tenho o braço bastante bem lavado. Mudou de cor.

 

Não preciso destes dois exemplos breves para saber aquilo que muitas pessoas pensam repetidamente, todos os dias, e que não me dizem por pudor. Desde que cobri o braço esquerdo com tatuagens que sei aquilo que sentem as mulheres com decotes. É muito frequente o olhar das pessoas que estão a falar comigo fugir-lhes para o meu braço. Depois, disfarçam. No caso dos piercings, é mais inconsciente. Estão a falar comigo e, de repente, começam a ter comichão na sobrancelha, exactamente no lugar do meu piercing.

 

Eu conheço bem a interpretação geral dos piercings (drogado/homossexual) e das tatuagens (drogado/presidiário). À minha frente, já se referiram aos meus piercings dezenas de vezes como "os brinquinhos". Já fui tratado com desprezo por dermatologistas que acharam que eu não tinha o direito de estar no seu consultório, por estas palavras. Já fui analisado por inúmeras mulheres, senhoras, que, como se estivessem a aproximar-se de uma ferida, perguntaram: isso dói?

 

Eu compreendo essas pessoas, tanto os putanheiros que negoceiam Mercedes, como as senhoras que comem palmiers na confeitaria. Compreendo até os dermatologistas. À sua maneira, cada um deles se sente rejeitado pelas minhas tatuagens e pelos meus piercings. Acreditam que eu não quero ser como eles, não quero ser eles. Têm de responder de alguma maneira a essa rejeição. É-lhes fácil encontrar falta de sentido em furar o corpo com uma agulha e colocar um pendente metálico ou em preencher uma parte da pele com cicatrizes cheias de tinta. Uma pergunta que também me fazem, visivelmente baralhados, é: porquê?

 

As razões não são simples e são demasiado íntimas. Não tenho de dá-las. Talvez seja necessário ser eu, estar no meu lugar e ter o meu nome para entendê-las por completo. Essa é a natureza da pele. Para nós próprios, a pele é aquilo que nos protege, a fronteira entre a nossa presença e o mundo físico, o aparelho sensível que capta a percepção daquilo com que interagimos. Para os outros, essa mesma pele é a nossa superfície, a aparência. E, já se sabe, a aparência é tão enganadora, a superfície é tão superficial.

 

Também é comum admirarem-se com o carácter definitivo das tatuagens, perguntarem-me se não tenho medo de me arrepender. Sorrio. Emociono-me com a inocência daqueles que não percebem que tudo é definitivo e deixa marcas. Eu escrevo livros. Sei que tudo é definitivo e nada é eterno.

 

Sim, dói fazer piercings e tatuagens. Não, não são uma picadinha e não, não são umas cócegas. Para quê fazê-lo? Já respondi, cada um terá as suas próprias razões. São individuais e ninguém deveria sentir-se ameaçado por elas. Quando pedi a opinião da minha mãe, uma mulher que nasceu no início dos anos 40 e que me trouxe ao mundo nos anos 70, ela respondeu: desde que não seja no meu braço, tudo bem. Fiquei feliz por ter a aprovação que realmente me importava. Tudo óptimo, mãe, é no meu braço.

 

Além disso, a vida. Na escola do meu filho, sou o pai tatuado que passa entre os pais de fato. No supermercado, sou aquele que é vigiado pelo segurança a pouca distância. No barbeiro, sinto o embaraço no momento de me tocarem na orelha. Mas, quando estaciono o carro, os arrumadores tratam-me sempre por tu e ninguém mete conversa comigo quando vou a uma bomba da gasolina às quatro da manhã.

 

Em casa, tomo banho. A água morna na minha pele. Deslizo as mãos pelo meu corpo. É meu. Estou dentro dele.

 

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Outubro 2010)


 



77 comentários

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De Raquel Mendes a 28.10.2010 às 11:06

Se me permite, vou ler a sua crónica aos meus alunos.
Depois do que li, se me permite, faço-lhe uma vénia.
Abraço
Raquel
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De Lacra a 28.10.2010 às 11:46

adorei!
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De Kátia Suelotto a 28.10.2010 às 12:02

Tua crónica me fez pensar imediatamente na canção de Bob Dylan, "Blowin in the wind": "How many roads must a man walk down before you call him a man?" Há espécies de homens que jamais a compreenderão. Há outros, que nos "salvam" deles. Thanks; tu és por demais especial, és um daqueles que nos redimem. Um texto para ser lido e relido sempre.
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De chaves de chaves a 28.10.2010 às 20:27

a Vida põe-nos marcas que não pedimos...
certas Pessoas deixam marcas que não queríamos...
o Tempo insiste em marcar-se em nós contra a nossa vontade...

Como eu te entendo. Tatuagens, piercings e decotes:
Marcas que Nós pedimos. Marcas que Nós queremos. Marcas que nos marcam... à Nossa vontade!
Nossa vontade.
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De Ana GG a 28.10.2010 às 20:59

José Luís, como sempre adorei o texto e a forma sempre tão simples e bonita como um assunto complexo é abordado e(ou sentido.
Sou mãe de um um "terrível tatuado e perfurado"...escrevi sobre isso aqui:
http://escritoseafins.blogspot.com/2010/04/ora-vamos-la-falar-de-um-assunto.html

Se tiver paciência...
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De Paula Santos a 28.10.2010 às 23:14

Já tinha lido na Visão. Achei excelente, mas acho que há pessoas que olham apenas porque gostam. Eu gosto muito de ver pessoas tatuadas com arte, mas se olhar demais, pensam logo que estou a depreciar quem as tem. Quantas vezes terei sido (eu e quem olha porque gosta do que vê) julgada com algum preconceito?
O último parágrafo é de uma sensualidade magnífica!
Parabéns!
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De Giovana Lopes a 29.10.2010 às 13:51

É lamentável que ainda existe o preconceito neste mundo tão diversificado em que vivemos.
Sim, debaixo da roupa somos todos nus, debaixo da pele (fisicamente, ao menos) somos todos iguais! Somos aquilo que sentimos, aquilo que transmitimos com toda a sinceridade ao outro, assim como o que contribuimos e o que vivemos, enfim.
Mas, infelizmente, por debaixo da pele ainda há a não aceitação de si próprio, o que gera a outremização . Talvez o medo de si mesmo seja a explicação para esse sentimento infeliz e atrasado... O medo de não ser aceito ao se deparar com alguém diferente de si, como você mencionou.
Isso me faz lembrar do que diria um cantor aqui do Brasil: "Assim caminha a humanidade, a passos de formiga e sem vontade..." A "casca" de nada importa. O caráter de alguém não se faz pela sua aparência, mas por sua dignidade.
Adoro seu trabalho, Zé Luís! E fico profundamente feliz em saber que compartilha desse mesmo sentimento.
Admiro-te muito!
Abraço! :)
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De Sandra Filipa a 29.10.2010 às 23:30

...cada vez mais vivemos numa sociedade que nos exige uma imagem que alguém definiu como correcta ou bonita e que ao meu ver é perigosamente enganadora e vazia, as pessoas olham e colocam etiquetas, achando-se donas de verdades absolutas e especulando sobre a possivel vida da pessoa.
Eu tenho uma única tatuagem na perna (é raro verem), mas noto muito quando me visto de maneira diferente ou quando alguém diz é da familia de "falno tal" ou tem um trabalho com estatuto!Aí iluminasse um sorriso afável com o qual somos cumprimentados.Eu não chamo a isto hipocrisia, nem cinismo, o nome que lhe dou é vulgaridade!
Abraços de uma grande admiradora há vários anos.
Bom trabalho!
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De ana almerum a 30.10.2010 às 11:32

De facto, José Luís, o preconceito relativamente a algumas opções ou práticas continua a existir por todo o mundo e Portugal e os portugueses não são diferentes. ... Mas, tudo isso (piercings e tatuagens) vão perdendo a insignificante importância à medida em que vai ganhando espaço como escritor, não deixando contudo, que estas tenham para si um intimo e especial significado...a vida tem-me dito que, à medida que vamos gostando ou amando alguém porque a Admiramos deixamos cair para 2º plano miudezas dessa ordem, deixamos até de as ver, perdemos inclusive a memória de que existem. Os estereótipos também morrem..., aliás alguns nem deveriam mesmo ter existido, não serviram para nada durante a sua existência, senão para perder tempo da nossa vida, não nos deixando dedicar mais aos afectos...esses sim, valem a pena. Adorei a imagem, de que a fronteira é a nossa pele...bjs e muita inspiração.
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De Vânia Ribeiro a 31.10.2010 às 05:10

O que importa são:

Encontros que respiram vida.
Pele que expele as sílabas contidas.
Pele dentro da pele. Suores frios que se expiram.
Tatuagem doirada.

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