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Dívidas

26.07.15

  

Quanto devemos aos bombeiros voluntários? Enquanto estamos aqui, preocupados com os nossos assuntos, a tratarmos daquilo que nos diz respeito, eles estão disponíveis para serem arrancados da sua vida e colocados à frente de chamas, incêndios que não foram ateados por eles, a arrasarem propriedades que não lhes pertencem. É domingo à tarde, por exemplo, e, de repente, estão num carro a alta velocidade, arrastam uma sirene desesperada ao longo do caminho. Encontram aflição quando chegam, desenrolam uma mangueira áspera e respiram golfadas de fumo que lhes mascarra as faces. Passam horas assim e, no final de tudo, a sua recompensa será assistir à desolação de um campo negro e, talvez, beber de um pacote de leite oferecido por alguém.

 

Há bombeiros voluntários que morrem durante esse trabalho. Quanto devemos à sua memória? Quanto devemos às famílias desses bombeiros mortos? Agora, onde estiverem, sentem a sua ausência em todos os dias. São pais, filhos, maridos, mulheres, irmãos que imaginam como seria a vida daqueles que perderam, imaginam-nos com idades que nunca chegarão a ter.

 

Quanto devemos aos técnicos do INEM? Quanto devemos aos enfermeiros? Quanto devemos às pessoas que recebem os doentes nas urgências dos hospitais? São poucos os que têm paciência de preencher os papéis, mas os papéis precisam de ser preenchidos.

 

Quanto devemos aos professores? Não sabem onde vão trabalhar para o ano, não sabem se terão trabalho. Quanto devemos aos jovens em cubículos de call-centers? Quanto devemos aos estagiários não remunerados? Quanto devemos aos vendedores com excesso de habilitações? Quanto devemos aos desempregados?

 

Quanto devemos aos músicos? Depois de aprenderem a tocar, passam anos a fazê-lo de borla para nosso divertimento e, garantem-lhes, para mostrar o seu trabalho. Ao fim da noite, entre o público, poucos considerarão trabalho aquilo que eles fizeram. E quanto devemos aos bailarinos? Quanto devemos às bailarinas? Quanto devemos às atrizes? De repente, colocam-nas no centro de todos os olhares, de todos os julgamentos, a troco de uma oportunidade. Uma oportunidade de quê? Uma oportunidade de uma oportunidade. Serão velhas e terão a mesma maquilhagem. Quanto devemos a todos os que trabalham para que exista teatro e cinema neste país?

 

Quanto devemos aos desportistas das chamadas modalidades amadoras? Levam o equipamento na mochila, vão para o treino depois do trabalho, chegam tarde a casa. Os fins-de-semana são pequenos, acabam depressa. E quanto devemos aos atletas paralímpicos? Com muita probabilidade, quando os jogos forem notícia, havemos de contar medalhas de modalidades que desconhecemos e teremos moral para exigir; diremos cinco ou seis, sem nos lembrarmos que, atrás de cada uma, está o esforço contínuo de alguém durante anos.

 

Já que falamos nisso, quanto devemos àqueles que têm mobilidade reduzida e que não podem sair de casa? Não há rampas, há carros estacionados em cima de passeios com buracos, não há dinheiro para comprar a cadeira de rodas adequada. São prisioneiros sem culpa formada, sem acusação, sem julgamento. Foram condenados a prisão domiciliária. Não há data marcada para o fim da sua pena.

 

Quanto devemos aos guardas prisionais? Estão agora atrás de muros, rodeados de ameaças. Quanto devemos aos homens do lixo? Queixamo-nos do barulho que fazem quando recolhem o nosso próprio lixo. Não queremos ser incomodados, estamos a repousar. Quanto devemos às mulheres-a-dias? Havemos de culpá-las se desaparecer alguma coisa. Quanto devemos aos coveiros?

 

E quanto devemos aos credores internacionais? Definiram juros e emprestaram aquilo de que não precisavam a outros que estavam aqui e que se retiraram na hora de pagar. Ficámos cá nós, não temos para onde ir. A propósito, quanto devemos àqueles que emigraram? Deixaram a família contra a sua vontade. Vimo-los partir. Sentimos a sua falta.

 

Afinal, quanto devemos aos bancos e às instituições económicas internacionais? Nunca lidámos com elas. Os acordos foram feitos em nosso nome mas, tantas vezes, sem o nosso conhecimento. Enquanto isso acontecia, estávamos a viver, acreditando que contribuíamos para a construção, dignidade e prosperidade do país a que pertencemos. Quanto devemos a nós próprios?

 

Não se trata de não pagar as nossas dívidas, trata-se de saber a quem devemos.

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Julho 2015)

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Uma versão de Os Lusíadas, feita por José Luís Peixoto, começou a ser distribuída com a revista Visão no dia 11 de Abril de 2013. 

A totalidade da obra será apresentada durante 10 semanas, ao ritmo de um canto por semana.

Esta edição conta com imagens do grande mural de graffiti, que será feito ao longo desse tempo pelos ARM Collective. 

A iniciativa desta edição faz parte da celebração dos 20 anos da revista Visão.

 

 

 

 

 

 

Excerto da versão de José Luís Peixoto:

 

 

CANTO I

 

 

As armas e os barões assinalados, etc? Calma, calma. Mais devagar.

 

Sem tempo, as ideias não querem aparecer.

 

De certeza absoluta que o poeta conhecia esta verdade simples. As palavras do seu grande poema transportam muito tempo, muita história e muitas histórias. Talvez fosse por isso que o poeta se dava com gente entendida no tamanho do tempo: navegadores, reis e deuses.

 

Imagine-se.

 

Escrevo sobre aquilo que o poeta escreveu e, ao fazê-lo, escrevo sobre um assunto de completa diferença, outro assunto mesmo. Se as palavras do poeta são um reflexo, as minhas são reflexo de um reflexo e a sua imprecisão é garantida.

 

Talvez por isso, creio-me capaz de pedir inspiração com a mesma força às ninfas do Tejo. Imagino-as diferentes, aposto. Dou-lhes rostos diferentes, outras caras, outros descaramentos, mas rogo-lhes com o mesmo fervor pela mesma habilidade grandíloqua e corrente.

 

Não estou ainda no passado, estou na crueza deste aqui. Tudo é concreto à minha volta. Enquanto que a voz do poeta se fixou na solene perfeição decassilábica, a minha voz gasta-se na indecisão da garganta, espécie de adolescência perpétua, mudança ridícula de voz, grave e aguda, grave e cana rachada.

 

Não procuro desculpas, ó ninfas do Tejo. Procuro adjectivos.

 

Na minha condição, sigo o poeta. Irá sempre faltar-me sê-lo. Entre mim e ele, a distância.

 

E, no entanto, por vezes e talvez por acidente, também nos aproximamos.

 

Nada é apenas uma coisa, nem sequer o número um, o canto um, a estância um. As armas e os barões assinalados, take dois.

 

Tágides do Tejo, ninfas da ninfetice total, apesar de mais velhas, mais maduras, emprestem-me ainda um resto do vosso ninfetismo para espalhar um pouco mais, mesmo que não seja por toda a parte, os feitos daqueles portugueses que navegaram por oceanos inéditos e, também, o valor daqueles reis desse mesmo Portugal, que o fizeram sinónimo de fé e o esticaram pelo mundo.

 

E que, pelo menos, não se fique a pensar que Taprobana é nome de avó antiga: Dona Taprobana, Ti Maria Taprobana. Não. Antes que sejam sugeridos outros delírios, é importante que fique assente: Taprobana era o antigo nome da ilha de Ceilão, metaforicamente significava o fim do mundo. Para explicação mais detalhada, é favor consultar a internet.

 

Aqueles de quem o poema épico fala, aqueles que espero ser capaz de referir também nas linhas que se seguem, passaram ainda além da Taprobana.

 

 

 

 

Se apenas mostrasse modéstia, a realidade seria desproporcional.

 

Hoje, ao escrever estas palavras, há uma colecção de assuntos que domino com mais segurança do que o próprio poeta. Tenho a vantagem do tempo que passou. Esse é o caso das referências a Dom Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 - Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578). Não possuo os detalhes do seu último dia, mas avalio que a dedicatória do poeta, versos e versos, se revelou exagerada em muitos dos atributos que lhe reconhece. A confessa incapacidade de cantá-lo através da sua poesia é inflação do monarca e deficit do poeta.

 

Nos jornais de hoje, já se sabe o resultado dos arremedos do rei. O entusiasmo de sua majestade trouxe uma dinastia de mágoa. Nesse conhecimento, não posso garantir que o poeta continuasse a dedicar-lhe uma obra tão importante.

 

Ou talvez sim. Ou talvez não houvesse outro nos séculos deste país que mais o merecesse.

 

 

 

 

Creio que era um dia normal para os deuses.

 

O Olimpo estava pleno de luz, mas qual era a sua forma? Talvez os deuses se movessem apenas na luz, talvez o chão fosse uma espécie de neblina luminosa. Nesse caso, é bem provável que o Olimpo fosse o lugar dos sonhos. Tanto dos nocturnos, como das ilusões em vigília. Apesar da sua originalidade, esse também é um lugar dos mamíferos humanos.

 

Sem psicologia, a biologia é botânica.

 

Imagino Júpiter de barba, cabelo de caracóis largos, tronco nu.

 

Imagino Baco com a cara limpa, coroa de parras e cachos de uvas, corpo redondo e flácido.

 

Imagino Vénus com feições miúdas, tão linda, o tom certo de palidez, cabelos longos e brilhantes.

 

Imagino Marte com músculos eficazes e rosto ligeiramente triste.

 

Como numa reunião de condomínio ou num conselho de ministros, Júpiter lançou-se num longo discurso que já trazia preparado de casa. Percebia-se que tinha gosto em ouvir-se a si próprio. Nele, elogiou os navegadores portugueses, dando apreço aos seus trabalhos, à sua sobrevivência, defendendo a sua defesa, protegendo a sua protecção.

 

Baco, sóbrio, tinha uma perspectiva diferente pronta a ser comunicada. Proprietário de uma certa fama no oriente, temia que os portugueses ao chegarem lá pudessem roubar-lha, deixando-lhe apenas o amargo esquecimento. Cabe a cada um cuidar daquilo que é seu. Exaltado, Baco atacou a defesa dos portugueses, desprotegeu a sua protecção.

 

Chegou então a vez de Vénus, essa menina. Com voz delicada, véu ao vento, afirmou que os lusitanos portugueses lusíadas lhe faziam lembrar os seus gentis romanos. Falantes de uma língua rente ao latim, levariam o amor para onde quer que chegassem. Ela mesma, envolta em delicadeza, garantiria essa nobreza de sentimentos.

 

Por uma questão de tom, seria muito custoso a um brutamontes da estirpe de Baco contradizer uma donzela tão vaporosa. Mais difícil ainda quando Marte, incentivado por um amor antigo, fez o céu tremer com uma pancada do seu bastão. Levantando a viseira do elmo, exclamou palavras rijas, voz grossa, concordando com Vénus e encorajando Júpiter a não desistir das suas primeiras intenções. Esse recuo seria uma mostra de fragilidade. Ao mesmo tempo, as razões de Baco pareceram-lhe suspeitas, o próprio Baco pareceu-lhe suspeito.

 

Resultado final: 3 - 1.

 

Sem apito, Júpiter apitou o final da partida. Sem martelo, pumba, declarou encerrada a reunião.

 

 

 




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Arquivo de recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.

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