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Quando acabei de escrever o meu primeiro romance, fechei-me em casa durante duas semanas. Nesse tempo fechado do mundo, vivi cada olhar de cada personagem, cada esperança, cada angústia. Na altura, era muito novo. Creio que se o tivesse feito hoje, me teria suicidado no último dia dessas duas semanas, como desfecho lógico. A lógica, o absurdo da lógica e a lógica precisa, milimétrica, do absurdo são para mim assuntos que me absorvem, como se fossem, de facto, a primeira regra da minha vida. Mas, como disse, era muito novo, e esse pânico não tinha ainda atingido as dimensões actuais que, juntamente com outros pânicos e cansaços, acabarão por ser o meu fim. Nesse tempo, eu era o único leitor de mim próprio e ninguém esperava nada das minhas palavras. A vida era menos difícil, portanto. Eu considerava-me um grande escritor desconhecido e era quase feliz, porque fechava os olhos a muitas coisas.

No primeiro dia em que saí à rua, depois dessas semanas, trazia ainda no olhar o olhar das personagens e passeei-me por Lisboa, como se não conhecesse Lisboa, como se me admirasse com tudo. As horas dessa tarde muito fria de Janeiro passaram e eu passei com elas. Aos poucos, deixei de ser as personagens para ser o narrador: uma voz maior que eu, uma voz que tinha surgido no romance como uma voz da terra. Descrevi, para mim próprio, as paredes, os pombos a andarem devagar no chão, como se todos os pombos fossem uma criatura maior que se amontoa e se estilhaça. Descrevi, para mim próprio, as pessoas a olharem-me e imaginei o que elas imaginavam de mim. Mas também aos poucos, o narrador saiu de mim, talvez assustado com o ridículo de ser um narrador a descrever mentiras dentro de uma pessoa, e voltei a ser o que sou: qualquer coisa absurda que procura uma lógica impossível e que se chama Zé Luís. No entanto, depois de duas semanas a observar palavras, depois de um ano a desenterrar palavras, eu era alguém que só podia fazer coisas grandiosas. Só essa ideia me parecia lógica. Entrei numa livraria do Chiado. Vi-me a entrar na livraria e imaginei: José Luís Peixoto entra numa livraria, onde ainda se ignora a importância das suas palavras. Creio que o narrador ainda devia andar dentro de mim, escondido em algum canto escuro.

Não sei como explicar. Tirei um exemplar do “Ulisses” da prateleira e comecei a ler. Nunca o tinha lido todo. Ainda não li. Não acredito que alguma vez o vá ler todo. No entanto, tirei um exemplar da prateleira e li dois parágrafos. Gostava de escrever assim. O efeito que aquela breve leitura teve em mim foi inesperado. Instantaneamente, lembrei-me de ter lido, havia alguns anos, numa enciclopédia da minha irmã, que o James Joyce estava enterrado em Zurique. Lembrei-me também que, na altura tinha acabado de ler “Dubliners” e que senti algo de revolta. Na livraria, sem que os meus olhos vissem a livraria, imaginei-me, secretamente, um herói. Eu tinha escrito um dos maiores romances da história da literatura. Eu só podia fazer coisas grandiosas.

Em casa, guardei duas camisolas dentro de uma mochila e saí. Tinha dinheiro e fui para Santa Apolónia. Comprei um bilhete para Zurique. Não sabia que se podia ir para Zurique de comboio, mas fui informado que o Sud-Express ia sair dentro de poucos minutos e que, assim que chegasse a França, devia mudar de comboio. Fui todo o caminho de pé no corredor. Assustava-me a ideia de não me conseguir controlar e de poder contar o meu plano a qualquer emigrante de Paris ou a qualquer francês que andasse a fazer um inter-rail e que partilhasse comigo o vagão. Fui sempre a olhar pela janela e, interrompido de vez em quando por revisores, pensei sempre que ia chegar a Zurique e que ia desenterrar o corpo do James Joyce e que ia levá-lo para Dublin. Donde nunca devia ter saído. Troquei de comboio e cheguei a Zurique.

O dia estava a acabar. Telefonei à minha mãe e disse-lhe que estava no Rossio. Estava num telefone público da Suíça. Tenho uma licenciatura em alemão. Tenho uma diploma carimbado que garante que sou licenciado em alemão. Debaixo do carimbo, falta dizer que foram quatro anos de cábulas e de ajudas por parte de alguns colegas mais caridosos. Mas, mesmo assim, o meu alemão básico chegou-me para alugar um quarto numa pensão pequena, pequena, minúscula, mesmo ao lado do cemitério. A senhora da recepção, com as mãos sobre os papéis de registo,  virou os óculos na ponta do nariz quando lhe disse que fazia questão de ficar no quarto ínfimo, que tinha uma janela do tamanho de um isqueiro com vista para o cemitério. Pousei a mochila na única cadeira que cabia entre a cama e a parede, e passei a noite, de joelhos sobre a cama, a espreitar para o negro do cemitério: o branco das campas desenhado no negro, as formas das árvores esculpidas no negro.

Quando o sol nasceu, tinha as pernas dormentes. Desci para o pequeno almoço: torradas e café com leite que a senhora da recepção me serviu contrariada. Comi devagar. Não tenho apetite de manhã. Esperei três cigarros até que abrissem o portão do cemitério. Eu e duas velhas fomos as primeiras pessoas a entrar. Tentei procurar a campa sozinho, mas perdi-me. Encontrei uma das velhas a trocar flores murchas de uma jarra e perguntei-lhe. James Joyce? Nunca ouvi falar. Não lhe expliquei. Há coisas que não vale a pena tentar explicar. Andei toda a manhã, às voltas no cemitério, a olhar para nomes, a olhar para datas. Por fim, era já hora de almoço, estava com fome e com frio, encontrei a campa do James Joyce. Estava abandonada. Nenhuma velha lhe ia trocar as flores murchas, não tinha flores. Tinha musgo à volta das letras. James Joyce escrito a musgo.

Voltei à pensão. A senhora da recepção assustou-se com a minha chegada. Assustou-se ainda mais quando lhe perguntei pelo almoço. Pão, duas salsichas fritas e dois ovos estrelados pela senhora da recepção com um avental de folhos. Saí para ir comprar uma picareta e uma pá. Tive que apontá-las com o dedo. Não sei dizer picareta em alemão. Fui para o meu quarto dormir e sonhar. Acordei a meio da noite. Acordei logo totalmente desperto, como se não tivesse acordado, como se não tivesse dormido. Agarrei a picareta, a pá e a mochila. Saí do quarto sem fazer barulho. Na rua, vesti as duas camisolas que trazia na mochila. Estava muito frio. Subi para cima de um Mercedes que estava estacionado e saltei o muro do cemitério. Procurei o caminho que conhecia e fui directo à campa do James Joyce. Enfiei a ponta da picareta numa das juntas do mármore e fiz força, força e força. O mármore não se movia um único som de mármore a arrastar-se. Quando as minhas forças já se desesperavam, fechei os olhos e, com toda a vontade dos meus braços e do meu corpo inteiro, ouvi o mármore a soltar-se. Comecei a cavar. A picareta e, depois, a pá. O som da picareta e, depois, o som da pá. O meu entusiasmo a apressar-me. Depois, a picareta a acertar em algo. O tesouro. A pá a tirar a terra solta. As minhas mãos a tirarem a terra solta. A tampa do caixão partiu-se debaixo dos meus pés. Afastei pedaços de caixão. Lá estava o James Joyce. Segurei-lhe o braço direito, a mão que escreveu o “Ulisses”, e os ossos separaram-se pelas juntas. Segurei-lhe o crânio: os olhos do James Joyce, os dentes do James Joyce. Surpreendeu-me o pouco peso do crânio do James Joyce, o crânio onde nasceu o “Ulisses”. Olhei para o céu e não encontrei a lua. Algumas estrelas entre as nuvens. Na noite, senti-me grandioso e feliz. Guardei tudo o que me parecia pertencer ao James Joyce dentro da mochila. Os ossos, uns contra os outros, faziam um barulho brando. Saí da cova e comecei a tapá-la com pás cheias de terra. Animado pelo peso do James Joyce nas minhas costas, empurrei de novo a pedra sobre a campa. De manhã, estava na estação de comboios.

Sentado num vagão, levava a mochila sobre o colo. Pensava que era revelador que o James Joyce, ele próprio, pesasse menos do que a maioria das edições do “Ulisses”, quando à passagem pela fronteira, o comboio abrandou e parou. Entrou um polícia, bigode, patilhas, e pediu-me o passaporte. Apontou para a mochila e perguntou: chocolates? Sorri. Saiu. Meio cigarro depois, o comboio continuou. A paisagem, as árvores despidas, as poças de água, deixavam-me pensar. Por vezes, as aldeias. Na pequena estação de uma aldeia cinzenta e verde, decidi sair. Entrei num café, conheci um senhor. Ofereceu-me um quarto, ofereceu-me trabalho a tratar de cinco vacas. Apaixonei-me pela filha do senhor. Guardava a mochila atrás de uma cómoda. Passava as noites, no quarto ao lado da filha do patrão, Sabine era o seu nome, a pensar nela e a sofrer por ela. Às vezes, retirava o James Joyce de dentro da mochila e estendia-o sobre a cama para não ganhar mofo. Passaram-se três meses de que não me orgulho.

Quando decidi ir-me embora, era já primavera. Três das cinco vacas iam parir, mas eu estava farto de amor não correspondido e Dublin esperava-me. De madrugada, dirigi-me à pequena estação e apanhei o primeiro comboio que passou em direcção a Paris. Não fui à Torre Eiffel, nem ao Arco do Triunfo, nem ao Louvre. Telefonei à minha mãe e disse-lhe que estava no Rossio. Estava no telefone público de uma estação de Paris. Troquei de comboio. Estava cansado. Mesmo o James Joyce, tão leve, parecia-me demasiado pesado. Considerei ainda a hipótese de abandoná-lo num contentor do lixo de Paris e voltar para casa de avião, mas eu não sou daqueles que desistem. Eu não sou daqueles que desistem. Enquanto tenho um resto de força, tenho um resto de esperança. Eu não sou daqueles que desistem. E cheguei a Calais. Os barcos estavam cheios e só podia seguir viagem no dia seguinte. Enganei um inglês. Roubei-lhe o bilhete e também lhe teria roubado a carteira e o relógio se me apetecesse, mas o bilhete bastava-me. Em Inglaterra viajei sempre de autocarro. Passei metade do tempo enjoado e metade do tempo a dormir, de boca aberta, tombado sobre o passageiro do lado, abraçado ao James Joyce. Em Londres, decidi apanhar um avião directo para Dublin. Estava muito cansado e muito sujo. Ainda cheirava a vaca. Tinha saudade das personagens do meu romance e vontade de telefonar à minha mãe e dizer-lhe que estava no Rossio, estando mesmo no Rossio.

Depois do check in, depois da mochila ter sido radiografada como bagagem de mão, depois de me terem avisado com uma piscadela de olho que não se podia viajar com comida, mas que desta vez passava, sentei-me numa das cadeiras da primeira classe. A hospedeira tirou-me uma palha do cabelo e serviu-me champanhe. Respirei. A centenas de metros de altura, abri um pedacinho do fecho da mochila e olhei para o James Joyce. Confiei nele, já éramos amigos, pousei-o no meu assento e fui à casa de banho. Lavei a cara. Quando voltei, estavam dois miúdos a atirar o James Joyce um para o outro. Agarrei a mochila furioso e contive-me para não dar uma estalada ao miúdo. A mãe dele, sentada ao lado, acordou e disse: oh, Sean. Apetecia-me chegar a Dublin. A aterragem foi suave.

As ruas, os pubs, as pessoas. Atravessei três pontes até encontrar um parque. No parque, caminhei até encontrar uma árvore que me agradasse. Era uma árvore grande, talvez um plátano. Entre as raízes, cavei com as mãos. Primeiro a relva, depois a terra. A noite crescia devagar na tarde. Passavam pessoas que me olhavam por um instante, mas todas desviavam o olhar. Quando não estava ninguém, nem nos caminhos do parque, nem atrás dos arbustos, enfiei o James Joyce, dentro da mochila, no buraco e cobri-o com terra e com uma camada de relva. Olhei por instantes para o sítio onde o deixei e considerei que tinha feito algo de bom. Afastei-me em direcção ao aeroporto. Levava uma falta no coração. Sentia pena de deixar o James Joyce. Na altura, ainda não sabia que quem deixa as coisas que ama espalhadas pelo mundo, sente sempre falta de algo onde quer que esteja. Fui para Lisboa.  Na noite seguinte, dormi já na minha cama, abraçado ao manuscrito do meu primeiro romance.

 

José Luís Peixoto, in Abraço (2011)

 

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Túmulo de James Joyce, em Zurique. (Fotografia de José Luís Peixoto, 2021).

 

 

 

Quando o cavaleiro acordou, apenas encontrou escuridão à sua volta. Conseguia ainda sentir o cavalo debaixo de si mas, estranhamente, não lhe distinguia um movimento mínimo, nem a respiração, nem um esticão de pele para afastar as moscas, nem o pescoço maciço a virar-se todo para um lado ou para outro. Na verdade, o cavaleiro não conseguia distinguir os seus próprios movimentos, tentava lançar um braço para a frente, tinha a sensação nítida de estar a fazê-lo, mas não conseguia sentir esse gesto simples. Fazia como se estivesse a tocar o seu corpo, passava as mãos pelo peito, sabia-se a fazer esse movimento, mas nem sentia as mãos no peito, nem sentia o peito nas mãos. Chegou a pensar que ainda estava adormecido. Talvez estivesse num daqueles sonhos em que se consegue ter a consciência de estar a sonhar. Esses sonhos tornam-se mais nítidos e reais no momento em que está quase a acordar. Este pensamento acalmou o cavaleiro. Quase adormeceu de novo enquanto esperava por acordar daquele sonho. Então, pareceu-lhe que não podia adormecer dentro de um sonho e, assim, concluiu que não podia estar a sonhar. Foi então que pensou que estava morto. Essa conclusão foi um instante de pânico seguido por uma tranquilidade absoluta. Se estava morto, para quê preocupar-se? Tinha pena daquilo que gostaria de ter feito, mas tinha a memória das muitas coisas que conseguiu fazer. Habituou-se à ideia de estar morto. Depois, aos poucos, foi-se aborrecendo da morte. Não acontecia nada dentro da escuridão. Era um negro opaco, sem qualquer quebra. Nessa falta de novidades, havia apenas o som. Em muitas ocasiões, o cavaleiro dirigia toda a atenção para o som. Aquilo que ouvia deixava-o perplexo. Distinguia claramente vozes de pessoas. Mas não conseguia perceber qual era a língua que falavam. Incansável, o cavaleiro tinha percorrido todo o reino. Durante todos esses anos, nunca tinha escutado nada que se assemelhasse àquela língua. Era o outro mundo, pensava, era a morte. Seria aquela a língua dos anjos? O cavaleiro não sabia. Chegou também a pensar que poderia estar cego. Mas, se assim fosse, porque estaria montado no seu cavalo completamente suspenso? O cavaleiro tinha muitas perguntas. Tinha poucas respostas. Ia esperar. Não havia mais nada que pudesse fazer. Inquieto e imóvel, observava a escuridão.

 

De repente, a escuridão rasgou-se. O cavaleiro de madeira, montado no seu cavalo, chegou às mãos do menino. As cores da árvore de Natal, por trás, brilharam mais nesse momento por efeito do rosto do menino. O avô, sentado a pouca distância, dizia-lhe: calma, devagar. O avô sorria e o presente que ele próprio recebia era poder assistir ao entusiasmo com que o neto segurava no cavaleiro de madeira, imaginando-lhe aventuras. O pai estava no outro lado da sala. Talvez a cidade existisse por detrás das janelas. Ninguém poderia saber ao certo. A mãe aproximou-se do avô, seu pai, e sorriu-lhe. O menino veio a correr e mostrou-lhe os pormenores com que o cavalo e o cavaleiro tinham sido esculpidos. Nesse dia de Natal, o menino tinha quatro anos. Mais tarde, já adulto, haveria de ter uma memória, distorcida, daquelas horas. Essa seria uma memória feita de tempo morno. Adulto, quando visitava a mãe e passava pela moldura com a fotografia do avô, pendurada no corredor, sentia ainda o conforto daquela manhã, o amor. O cavaleiro de madeira acompanhou-o ao longo de toda a infância. As suas cores foram-se desbotando. Os pormenores do rosto e das mãos foram-se lascando. Adulto, segurava o cavaleiro de madeira dentro das suas mãos de homem e conseguia ver-lhe as imperfeições, mas conseguia também vê-las cobertas por tudo o que tinha descoberto naquele dia de Natal. O avô tinha conversas com a mãe e sorria ao vê-lo brincar no chão da sala. Às vezes, o pai chegava com braçadas de lenha que, ao longo das horas, ia dispondo na lareira. A felicidade existiu em todos os pormenores daquela sala. O tempo iria decantá-la pelas vidas que ali se reuniram e que ali celebraram a sua reunião.

 

Gostaram?, perguntou a mãe. Não percebi a última frase, disse a Patrícia. O que significa “decantá-la”?, perguntou a Inês. As gémeas estavam tão despertas depois de ouvirem a história como tinham estado antes de a começarem a ouvir. A mãe fechou o livro e, antes de explicar, puxou-lhes os cobertores sobre o peito. Então, disse-lhes: o que a última frase quer dizer é que eles estavam muito felizes por estarem juntos, que isso é que era importante e que essa felicidade continuou com eles durante todas as suas vidas. As gémeas não mexeram o olhar, continuaram a fixar a mãe. E se fechássemos a luz?, perguntou. Estava cansada. Tinha sido um dia longo. Mãe?, chamou a Inês. Sim?, disse a mãe. E a Inês fez-lhe perguntas sobre os presentes. A Patrícia também fez perguntas sobre os presentes. A mãe sempre se admirou com o modo como as gémeas tinham exactamente as mesmas perguntas para fazer. Era como se uma e outra soubessem exactamente as mesmas coisas. A mãe disse que, na manhã seguinte, quando abrissem os embrulhos, logo saberiam. Disse que, naquele momento, não valia a pena estarem a preocupar-se com isso, o melhor seria descansarem bem porque, quando acordassem, haveria muito para brincar. As gémeas conformaram-se com esta explicação e, a Patrícia primeiro, a Inês depois, fecharam os olhos. A mãe afastou-se devagar, as meias sobre a alcatifa, e, quando encostou a porta, olhou para os vultos a respirarem longamente sob o cobertor. Com cinco anos, as gémeas estavam muito crescidas. A mãe chegou à cozinha. Os azulejos brancos reflectiam a luz da lâmpada fluorescente. A mãe tirou uma caneca do armário. Era uma caneca de loiça, gasta pelas lavagens da máquina, as cores esbatidas. Do frigorífico tirou um pacote de leite. Encheu a caneca e colocou-a no micro-ondas. Ficou a olhar para ela enquanto rodava, iluminada, como uma caneca que fosse bailarina num palco de vidro. Plim: o toque demasiado alto, demasiado estridente do micro-ondas. A caneca estava a escaldar, mas o leite estava apenas morno. Mexeu-o com uma colher. Então, sentou-se numa cadeira, ao lado da pequena mesa da cozinha onde pousou o cotovelo. E assim ficou, em pijama, de meias, a beber leite morno e a olhar para o ar. 

 

 

In Abraço, Quetzal Editores, 2011

 

Traição

15.01.13

 

 

 

Hoje é dia 21 de outubro de 2008. Estou a beber chá.

 

O meu marido anda lá fora, no quintal. Na paisagem imóvel da janela, uma brisa ligeira nas folhas mais altas, vejo-o às vezes. Furtivo, o meu marido passa com a pá, ou o ancinho, ou a mangueira, ou a tesoura de podar. Na nossa casa, os catálogos de jardinagem terminam sempre como leitura de casa de banho. O meu marido anda de botas e chapéu. Não há sol, mas aquele é o chapéu da jardinagem. Também as calças dobradas na canela e as botas. Agradeço a Deus pela jardinagem. Obrigado, Senhor, pela jardinagem. O meu marido precisa de distracções. Não lhe chega a televisão, adormece. O meu marido é doente cardíaco. O vidro da janela é grosso e eu ouço mal. Ouço bem um apito fininho, constante, branco, uma linha, ouço mal tudo o resto. O vidro da janela, eu ouço mal, mas sei que o meu marido está a assobiar. As pequenas plantas fazem-no feliz.

 

Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg, há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São pássaros pequenos que fazem barulho. No passado, o meu clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses. Não sei ainda quais são. Talvez a mágoa. Talvez a mágoa seja agora um dos meus interesses. Presto bastante atenção à mágoa, é certo. Neste verão que terminou, parecia-me que a mágoa tinha um cheiro entre os primeiros instantes de cada dia, uma nesga de luz matinal na janela do quarto. O meu marido na cozinha, acordado há horas, as chávenas a chocarem umas nas outras, e eu a decidir se estava acordada, se era outra manhã, se queria outra manhã, acordar, e a parecer-me que a mágoa tinha um cheiro. O meu marido nunca se apercebeu. O meu marido esqueceu-se de tocar-me há talvez quinze, dezasseis anos, nunca mais se lembrou. Em Fevereiro, faço setenta anos. Esta parte do ano, outubro, ficou sempre ligada na minha cabeça aos outubros de quando era adolescente e ia para a escola. Na minha imagem mental dos meses, agora parece maio. Há cinco meses, em maio, eu ainda estava chocada. Ontem, ao lavar-me, passei a mão pelo clitóris e, instintivamente, admirei-me. Por instantes, pensei que pudesse ser uma verruga, um sinal, um caroço.

 

Os arredores de Reggensburg têm asseio, os muros estão sempre acabados de pintar. Temos vizinhos a boa distância. Gosto do vento, mesmo daquele vento frio a meio do inverno. Reggensburg fica a cerca de 225 quilómetros de Amstetten. Nunca fiz essa viagem, nem para um lado e nem para o outro. Quando saímos de Amstetten, fomos viver para Dortmund, ficámos lá dez anos. Depois, fomos para Weimar, ficámos lá dois anos, até o meu marido se reformar. Podíamos ter procurado casa em qualquer lado. O meu marido insistiu na Baviera porque ficava perto da Áustria, acabamos por concordar com Reggensburg. Quando pede alguma coisa, o meu marido gagueja. Às vezes dizia: Amstetetetetetten. Sozinho, planeava fins-de-semana em Amstetten. Dizia: vivemos cinco dos nossos melhores anos naquela cidade, porque não queres voltar? Eu começava por negar que não quisesse voltar. Depois, inventava desculpas sem tentar sequer fazer sentido. Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura. Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.

 

Sempre usámos este verbo um pouco antigo, talvez um pouco livresco, século XIX. Quando o Josef começava a rosnar, eu dizia-lhe: possui-me, possui-me. Tenho de falar dos seus olhos azuis. Os olhos azuis do Josef brilhavam, seriam suficientes para iluminar uma sala. Não estou a exagerar. Ou talvez só um pouco. Quando o Josef me sorriu, me tratou por menina, quando me apontou o olhar cheio de entoações, desfiz-me invisivelmente. A partir daí, tratou-se de seguir um sentido. Às vezes, quando deixávamos cair a cabeça sobre as almofadas da cama, eu ficava a fazer-lhe festas no pequeno bigode colado aos lábios. Não era ridículo. Eu sorria, enquanto a nossa respiração abrandava ao mesmo tempo. Depois, ele olhava para mim e sorria também. O Josef sabia sorrir. À noite, o meu marido contava-me todos os pormenores da vida dos seus colegas, mas eu não o ouvia. O Josef gostava de sexo de pé. Eu inclinava-me na direcção da janela e ele ficava por trás, apreciava a paisagem. Em certos assuntos, muitos, eu considerava o Josef um poeta. Amstetten era uma cidade sem sobressaltos, as campainhas das bicicletas, as estações do ano nos dias certos. O Josef tinha umas pernas firmes, que eu gostava de apertar no interior das minhas.

 

Quando estava bom tempo, aos sábados, o meu marido e eu fazíamos piqueniques. O Josef tinha cinquenta e oito anos, mais quatro do que eu, e bastava que me tocasse com um dedo. Se nos cruzávamos na rua, eu tremia. Ninguém podia suspeitar. Ele sorria sem olhar para mim. Uma vez, estava num restaurante, e o meu marido perguntou-me: estás com frio? Era o Josef. Quando ganhei coragem para olhar melhor, não era o Josef, não era sequer parecido, mas tremi, não consegui controlar-me. Quando o Josef punha a cabeça no meio das minhas pernas, eu fazia-lhe festas no cabelo. Havia semanas em que nos víamos duas vezes, três vezes, havia semanas em que não nos víamos. Dependia de muitos factores. Conheci o Josef quando tive aulas de dança, salsa. Estive em três aulas. Depois de conhecê-lo, desisti. Deixei de ter tempo. Precisava de todos os instantes para pensar nele.

 

O meu marido estava muito triste na noite em que me contou que tínhamos de partir para Dortmund. Eu disse-lhe algumas frases inacabadas, palavras incompletas. O meu marido disse: pois é. O meu marido nasceu na Saxónia, a meia dúzia de quilómetros de Dresden e, no entanto, já tinha adoptado um sotaque austríaco. Artificial, enjoativo, mas sentido. O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres. Nessa noite, o meu marido tinha a cabeça entre as mãos, a realidade. Eu não podia fazer outra coisa. Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar, tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na minha imaginação.

 

Eu não tinha qualquer fotografia do Josef. Mesmo já em Reggensburg, havia vezes em que me sentava no sofá, de braços cruzados, a esforçar-me para recordar o seu rosto. Quando não conseguia, ia à cozinha e fazia panquecas. Era uma espécie de compensação e, ao mesmo tempo, um hábito. Depois, noutros dias, via-o em tudo. Havia um calor. O rosto dele era como uma chama. Tentei aprender a bordar. Via o rosto dele nos novelos de linha, no pano esticado. Foi talvez por isso que, quando apareceu a imagem dele na televisão, não me admirei logo. Acho que não gerei sequer um pensamento, não reagi. Analisando, reconheço agora que a ordem dos meus instintos perante a sua imagem seria não verbalizar. Foi com alguns segundos de atraso que me apercebi que o Josef, o Josef, o meu Josef, estava na televisão. Não sei qual foi o meu aspecto. Perdeu-se para sempre a imagem do meu rosto porque estava sozinha, não estava ao espelho, estava em brasa, a ouvir. Eu não queria acreditar. Foi em abril. Quando acordo a meio da noite com pesadelos, acredito por instantes que posso sentir-me aliviada, que não é real, mas depois, acordada, o pesadelo é ainda mais intenso porque é real. O Josef punha a língua toda dentro da minha boca. Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. Em roupão, tirei o carro da garagem e fui comprar revistas e jornais. Nenhum tinha a notícia. Liguei o rádio do carro e não falavam de outra coisa. No dia seguinte, todos os jornais tinham a notícia.

 

O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol. Eu era obrigada a ouvir o meu marido comentar esta história e a repetir: em Amstetten, quem diria em Amstetten, e nós lá, quem diria. E perguntava-me se eu conhecia aquela rua. Eu respondia. Já me tinha perdido naquela parte da cidade. Este ano, em abril, choveu muito pouco. Tenho saudades de quando chovia em abril. Eu fixava a imagem do Josef na televisão e acreditava que os seus olhos líquidos me viam. Não tinham envelhecido. Eram os mesmos. Os lábios eram os mesmos. O Josef traiu o nosso segredo com o seu próprio segredo. Mas, agora, o seu segredo já não existe, toda a gente o conhece. Agora, só existe o nosso. 

 

 

José Luís Peixoto, in revista Bravo! (2009, São Paulo)

 

A MULHER QUE SONHAVA

 

 

Acordou tão feliz. A freira abriu a porta do quarto e atravessou o pequeno corredor entre as camas. Algumas mulheres acordaram logo que esses pequenos ruídos tocaram o silêncio: a fechadura da porta, as solas finas de borracha sobre os tacos de madeira. Quase encostada à janela, a freira subiu as persianas. Naquele quarto, havia duas filas de quatro camas de ferro. À noite, as mulheres deitavam-se e ficavam com os pés apontados para o centro do quarto. A freira subiu as persianas. A luz que entrava no quarto era feita de uma juventude de luz. Devagar, a luz subiu pela superfície do quarto e pela superfície dos corpos das mulheres deitadas sob os cobertores. Os corpos das mulheres estavam mornos. Os cobertores eram de lã muito macia por estar gasta, eram castanhos, cheiravam a lavados e cheiravam ao detergente que era o cheiro de todos os objectos do asilo. A freira, diante da janela, em silêncio, parou-se a olhar para as mulheres que acordavam. Mais pela luz doce do que pelas vozes das mulheres que falavam umas para as outras, mais pela luz doce do que pelo olhar também doce da freira, ela acordou. Tão feliz. A sua cama era a terceira a contar da janela, na fila que ficava à esquerda do olhar da freira. Ao abrir os olhos, a luz da manhã. Sentia no corpo a combinação e os lençóis mornos. Levantou o braço sobre o cobertor. Já fora da cama, enquanto vestia o roupão e calçava os chinelos, lembrava-se ainda do sonho que tivera. Lembrava-se do sonho como se sonhasse ainda. Sorria. Tinha sonhado que era nova e que não estava no asilo. Era nova e estava em casa. A mãe chamava-a da cozinha. Era nova. Tinha sonhado. Tinha acordado tão feliz. Era nova. A mãe chamava-a da cozinha. No sonho, tinha um pedaço de espelho na mão. Os seus cabelos eram longos e viçosos. A sua pele era lisa. Os seus olhos eram novos e brilhavam. Tinha sonhado. Com a toalha dobrada sobre o ombro, com o sabonete na mão, esperava na fila para o banho. Ela não estava habituada, mas as freiras diziam que todas as mulheres tinham de tomar um duche ao acordar. Ela respeitava as regras do asilo. O vapor envolvia-lhe o olhar. As vozes das mulheres à sua volta eram uma coisa que acontecia num sítio onde ela não estava. Tinha sonhado que era nova. Como se sonhasse ainda, sorria.

Acordou incomodada. O cão começou a ladrar no quintal. Ainda de madrugada, o cão começou a ladrar, como se ladrasse contra qualquer coisa sem solução: o frio ou a morte. O início do inverno entrava pela janela com a nitidez incómoda do frio. O início do inverno pousava sobre a pequena bacia de esmalte e sobre as voltas de ferro do lavatório, pousava sobre a cómoda pobre. Entre os lençóis e sob a flanela da camisa de noite caminhavam linhas de ar gelado que lhe tocavam a pele. Ainda com os olhos fechados, o frio e o cão a ladrar trouxeram-lhe a vida que existe com os olhos fechados. A cara engelhada deixou que os olhos se abrissem devagar. Admirou-se com a luz que era como fosse o frio vagamente a iluminar todas as coisas. Os latidos do cão atravessavam o pequeno quadrado de vidro da janela e enchiam o quarto. Afastou a roupa da cama e levantou-se subitamente. Abriu a gaveta da banquinha e retirou um pedaço de espelho. Era o pedaço de um espelho que se tinha partido e que ela tinha encontrado a brilhar na rua. O incómodo de ter acordado permanecia. O incómodo de ter sonhado. Num sonho que continuava depois do momento em que acordou, tinha-se visto velha. Os seus cabelos eram brancos e secos, eram velhos e mortos. Eram cabelos mortos e cinzentos e sujos. A sua pele era muito velha porque era muito mole. O seu rosto era velho. Segurou o pedaço de espelho entre os dedos e, naquela superfície onde não cabia mais do que o olhar de um dos olhos, viu o reflexo da sua pele lisa, dos seus lábios, dos seus cabelos longos e castanhos. Passou os dedos pelos cabelos. Por um instante sentiu-se descansada. Por um instante, sentiu-se aliviada. A mãe chamava-a da cozinha. Naquele dia, aproximou-se da mãe com estranheza. Observou as suas mãos, os seus cabelos, o seu rosto, os seus olhos. Imaginou-se com a idade da mãe, imaginou-se igual a ela. No sonho que permanecia dentro dela, como uma lembrança que não conseguisse esquecer, era ainda mais velha do que a mãe. Por instantes, sentia o corpo cansado. Sem olhar para os cabelos, sentia-os cinzentos. Sem olhar para a pele, sentia-lhe as rugas como um peso. Sentia que os olhos lhe começavam a chorar de cansaço. Depois, lembrava-se do frio, e lembrava-se que lhe cresciam lágrimas nos olhos por causa do frio. Depois passava as palmas das mãos na pele do braço, puxava as pontas dos cabelos com os dedos, e sossegava. A mãe pediu-lhe para ir buscar lenha ao quintal. O frio entrava por baixo da porta. Ela abriu a porta. O frio bateu-lhe no rosto. No quintal, a irmã brincava com o cão que estava preso ao limoeiro. A irmã atirava um pequeno limão verde a rolar pela terra, o cão corria para agarrá-lo e, no momento em que abria a boca, a corda esticava-se a partir do tronco do limoeiro e segurava o cão pelo pescoço. Aproximou-se da pilha de lenha, agachou-se e, com uma das mãos, começou a encher o outro braço de achas que apertava de encontro ao peito. A irmã, pequena, deixou o cão e arrumou-se à sua saia. Meteu conversa. Ela não respondeu. Sentia-se velha. Como no sonho. Era velha. Como no sonho. Em instantes, não sabia se o sonho tinha sido antes ou depois de acordar.

Depois da missa, deixou-se ficar ajoelhada na capela do asilo a fingir que rezava. À saída, as freiras olharam para ela contentes e quase comovidas. As outras mulheres olharam para ela desconfiadas. Ficou sozinha. A capela, fresca, não existia. Dentro de si, debaixo dos seus olhos fechados, existia aquele sonho onde era uma rapariga. Debaixo dos seus olhos fechados, era nova, tinha ido ao quintal buscar lenha. Sorria. A irmã caminhava ao seu lado. Debaixo dos seus olhos fechados, tinha entrado na cozinha, tinha atirado a lenha para dentro do cesto da lenha. Sorria. Ajoelhada diante da lareira, tinha acendido uma pinha, cruzado duas achas, encostadas ao madeiro meio ardido que sobrara do dia anterior, e tinha disposto a pinha num sítio onde as suas chamas tocavam o ponto em que as achas se cruzavam. Ao seu lado, a irmã olhava as chamas a pegarem-se às achas e ao madeiro, olhava o lume. A mãe tinha-lhe posto um púcaro de café sobre a mesa. Sentou-se num banco a beber. O café aquecia-lhe um caminho no interior. Abria os olhos, tentando ver, tentando sentir tudo o que a rodeava, mas os olhos embaciavam-se e não viam senão aquilo com que tinha sonhado. Sentada a beber café, via-se velha, via-se ajoelhada numa capela que não conhecia. Devagar, com as costas a não se dobrarem, devagar, com as pernas sem acção nenhuma, devagar, com as mãos agarradas ao banco da frente, devagar, levantava-se velha e velha. Não olhava para o altar da capela que não conhecia. Olhava para a porta aberta, para a luz a atravessar o lugar da porta. Ver o que tinha sonhado na noite anterior incomodava-a. O café não lhe fazia proveito. Mas, por mais que tentasse, não conseguia deixar de se ver como se tinha sonhado. Estava numa capela que não conhecia e olhava para a luz a atravessar o lugar da porta. Caminhava em direcção à porta. Os seus passos eram um ruído leve, mas que durava no mármore. Ao acabar de beber o café, a mãe pediu-lhe que fosse à venda comprar uma quarta de chouriço para o jantar. Já ia a sair, quando a mãe lhe pediu que levasse a irmã. Estendeu-lhe a mão. Na rua, de mãos dadas com a irmã, continuava com o sonho a encher aquilo em que pensava. Velha, avançava por um caminho de terra, entre canteiros de flores que recebiam o sol sobre uma juventude que parecia rir-se da sua pele velha e dos seus cabelos sem vigor e dos seus movimentos trôpegos. Mas estava tão feliz com o sonho da noite anterior, com o sonho que ainda estava dentro dela. Tão feliz. O sonho era como aqueles sábados em que acordava a acreditar que era já domingo. No asilo, os dias eram todos iguais. Mas, às vezes, era sábado e acreditava que era já domingo. Nem quando percebia que não era domingo, nem quando via que não tinha ido à missa de domingo, nem quando chegava a hora da visita e reparava que as visitas de domingo não tinham chegado, deixava de pensar que era domingo nesses sábados em que acordava a acreditar que era já domingo. Assim estava o sonho dentro dela. Via-se nova. Caminhava pelo jardim do asilo, entre os muros de buxo e os canteiros de amores-perfeitos, e via-se nova. Via-se na rua, de mãos dadas com a irmã, a caminhar para a venda onde iria comprar uma quarta de chouriço para o jantar.

Estava sentada à mesa. Durante todo o dia, por mais que tivesse tentado fixar-se nas coisas da sua juventude, não tinha perdido aquela estranheza. Estava velha por dentro. Estava sentada à mesa. Estava cansada. Sentia o mesmo incómodo que sentira no momento em que acordou. O jantar estava ao centro da mesa. A mãe estava sentada num lado, a irmã estava sentada no outro, ela estava sentado no outro. Não falavam. O candeeiro de petróleo enegrecia as marcas do rosto da irmã quando ela tentava dizer qualquer coisa. A mãe encheu os pratos de sopa. Levantou o chouriço com uma colher e partiu-o em dois pedaços que pôs nos pratos das filhas. Ela estava com pouca vontade de comer. O lume ardia e ela pensava que dentro de pouco tempo seriam horas de ir dormir. Ela estava com medo de dormir. Ela estava com medo de sonhar. Em algumas ocasiões, ao enfiar a colher na boca, fechava os olhos e via-se rodeada de velhas a comerem sopa num salão muito iluminado. Abria os olhos de repente. Via a mãe e a irmã. O seu coração batia depressa. Nem a mãe, nem a irmã repararam nestes sustos que ela apanhava. Depois de comer, depois de lavar a loiça, foi deitar a irmã. Despiu-lhe o vestidinho e pôs-lhe a camisa de flanela. Nunca olhou para o rosto da sua pequena irmã com tanta ternura como nessa noite. Pousou-lhe a roupa da cama sobre o peito. A irmã baixou as pálpebras sobre os olhos. A pele branca e serena. Ficou a olhar para o seu rosto. A irmã adormeceu logo a seguir. A sua respiração tão calma. Saiu do quarto da irmã com passinhos breves. Entrou no seu quarto com medo de dormir. Despiu-se, pôs a camisa de noite. Deitou-se debaixo dos lençóis frios. Ficou inquieta durante muito tempo. Estava nervosa. Estava incomodada. Dava voltas na cama. Tinha medo de adormecer e de sonhar de novo. Cada instante da noite parecia muito grande. Mas depois de muito tempo, depois de ter passado muito tempo dentro da noite, depois do tempo já não se distinguir da noite longa, vasta, imensa, o seu corpo perdeu as forças e finalmente adormeceu.

Estava sentada à mesa. Naquele dia tinha sido tão feliz. Na sala de jantar do asilo, as freiras passaram a distribuir terrinas de sopa pelas mesas. A luz branca das lâmpadas fluorescentes tornava a sala de jantar nítida para quem tivesse os olhos nítidos. Ela tinha os olhos num sorriso que via ainda os seus olhos jovens. Os seus olhos viam os seus olhos. Ao seu lado, não estavam aquelas mulheres a comer sopa, aquelas mulheres que levantavam muito depressa a colher como se, do prato até à boca, a sopa se entornasse da colher. Aquelas mulheres que tremiam com a colher cheia de sopa, que fechavam a boca muito depressa sobre a colher. Ao seu lado estava a sua irmã pequena e a sua mãe. Sorria. Via-as juntas e sorria porque, naquele tempo, ainda a irmã não tinha apanhado a pneumonia que havia de a levar. A pneumonia que havia de lhe pôr a pele cinzenta, cada vez mais magra, as costelas a conhecerem-se mesmo com a camisa de flanela vestida, a voz frágil a pedir-lhe para brincar com ela, as mãos pequenas e fracas, um sorriso pequeno e fraco na pele cinzenta, os olhos quase a fecharem-se e, depois, morta. A sua irmã pequena morta. O caixão branco de anjinho. A sua mãe a chorar. A aflição dentro dela. Tudo isso era ainda impossível quando, dentro daquele sonho, via a irmã a comer sopa. A sua irmã feliz e inocente. Aquele sonho era um pedaço da sua vida antes da tristeza. Naquele dia tinha sido tão feliz. Rodeada de mulheres que comiam sopa, estava ao lado da sua irmã e da sua mãe. A irmã ainda não tinha morrido e a mãe ainda não tinha envelhecido tanto. A mãe ainda não tinha as roupas pretas que havia de vestir durante toda a vida, durante todos os dias. Ainda não era uma velha como ela era ali, sentada à mesa, naquele asilo. Nem a morte. Nem o cemitério com a campa pequena da irmã, um montinho de terra e uma cruz no talhão dos anjinhos, com a campa da mãe, mármore e o seu nome e a sua única fotografia. Nem o cemitério sozinho com noites consecutivas, sempre negras, sempre frias, noites a passarem sobre a terra, sobre os rostos da sua irmã e da sua mãe. Tudo isso era impossível quando, dentro daquele sonho, via a irmã a comer sopa. A sua irmã feliz e inocente. Aquele sonho era um pedaço da sua vida antes da tristeza. Naquele dia tinha sido tão feliz. Assim que acabou de comer quis ir para a cama. Queria dormir. Queria sonhar. Queria ser nova durante mais um dia.

Acordou tão feliz. Assim que percebeu que estava acordada, acordou dentro dela um júbilo infinito porque percebeu que tinha sonhado de novo. Deitada, rodeada de vozes de mulheres a acordarem também, sob o olhar da freira, estava deitada, rodeada de uma luz fria, sob o som do cão a ladrar preso ao limoeiro do quintal. Acordou incomodada. Tinha sonhado de novo. Levantou-se da cama. Na fila para tomar banho, sentia nos braços os arranhões suaves das cascas da lenha que carregava para o lume. Enquanto riscava um fósforo, abria a torneira da água. A pequena chama pegava-se à pinha. Com as costas da mão, via que a água do chuveiro já estava morna. Sentia a água no corpo velho, novo. Sentia o calor do lume no corpo velho, novo. A irmã estava ao seu lado enquanto passava o sabonete pelos braços. Agachada diante do lume, ouvia as vozes das outras mulheres. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A irmã estava viva. A mãe estava viva. Velha, nova, aceitava mais um dia. Queria viver.

 

 

 

conto de José Luís Peixoto, in Cal

 

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