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Ontem, perdi a carteira com todos os meus cartões e documentos.

 

Quero pedir-vos desculpas antecipadas por ter de voltar a escrever sobre a morte. Não é por mal. Não é porque queira perturbar-vos. Às vezes, perguntam-me se não tenho outro tema e chego a pensar que não. Perguntam-me se não me canso. Eu canso-me. Antes do verão, uma senhora disse-me: um escritor vê beleza nos lugares mais difíceis. Eu sorri, cobri a sua frase com silêncio e pensei: não é verdade.

 

Nesta semana que passou, na terça-feira, sentei-me no sofá da casa da minha irmã e estive a ver filmagens antigas. Metade das conversas eram: estás a filmar?, não me filmes, ela está a filmar?, não está a filmar, pois não? Depois, havia minutos longos em que esqueciam a máquina ligada e filmavam o chão: as pedras da rua, os passos mais lentos ou mais rápidos, a respiração. Está a filmar? Isto está a filmar? Havia partes em que estávamos todos juntos, todos mais novos. Entre nós, a falar connosco, a rir connosco, estavam os nossos mortos. A minha sobrinha, que agora se deprime e usa soutiens, era um bebé ao colo de um dos nossos mortos. Eu era um adolescente despenteado e desagradável, com um pulôver de lã. A minha mãe raramente se sentava. Como nós, os nossos mortos perguntavam: ela não está a filmar, pois não? E ouvia-se a voz da minha irmã, atrás da máquina, a dizer: olhe para aqui, diga lá qualquer coisa.

 

Cada vez que participo num programa de televisão em direto, tenho vontade de me levantar e de, a completo despropósito, dar uma estalada no apresentador. Não tenho nenhuma espécie de aversão para com qualquer apresentador. Pelo contrário. Normalmente, são pessoas que sabem fazer muito mais expressões faciais do que aquelas que mostram. A corrente que me puxa é a curiosidade acerca daquilo que aconteceria depois. Fazem-me perguntas: quando começou a escrever?, porque escreve?, quais são os autores que mais o influenciaram? Eu respondo devagar, e, por detrás de cada palavra, sinto vontade de levantar-me, ter a completa percepção de todos os meus movimentos e dar-lhes uma estalada.

 

Houve um dia desta semana em que perguntei aos nossos mortos se podia ser insensato. Eles disseram logo que sim.

 

No domingo, quando já começava a anoitecer, passei por uma criança que estava à espera, sozinha, dentro de um carro. Era um rapaz de seis ou sete anos. Estava sentado, muito direito, no banco de trás, e brincava com os dedos. Temo não ser capaz de explicar a opressão que senti no peito. Num instante, fui levado para um passado de há trinta anos atrás. Lembrei-me de ser aquele exacto menino e de não saber se os meus pais voltavam. Posso ir também? Não, espera aí. Por favor, posso ir também? Não, espera aí. O tempo passa de maneira diferente para as crianças. Cinco minutos é muito tempo, dez minutos é muito tempo, meia hora nunca mais acaba. Eu olhei para esse rapaz de seis ou sete anos, mas creio que ele não me viu. Melhor assim. Eu não iria querer um estranho a olhar para mim enquanto me doía o medo de ficar sozinho para sempre.

 

Perguntei aos nossos mortos se podia chorar. Eles disseram que sim, podia chorar o quanto quisesse.

 

Chorei dentro do carro com seis ou sete anos e chorei fora do carro, trinta e quatro anos, atrás de uma árvore, ridiculamente, a fingir que atava um sapato.

 

Quero pedir-vos desculpa por ter chorado.

 

Nestes últimos dias, nesta semana, no supermercado e noutros lugares bem iluminados, tem-me acontecido estar a conversar com a minha mãe ou com a minha sobrinha e, de repente, reparo que estou a falar para uma pessoa qualquer que não conheço e que olha para mim muito admirada. A minha mãe ou a minha sobrinha ficaram lá atrás a ver qualquer coisa e eu fico muito envergonhado por estar a demonstrar tanta familiaridade para uma desconhecida que só de modo remoto poderia ser confundida com a minha mãe ou com a minha sobrinha. Uma vez, só reparei nesse engano quando já ia começar a zangar-me por não me responder. Noutra vez, só reparei quando já estava a abanar-lhe o braço para que visse algum objecto que me parecia importante e que, agora, já não me consigo lembrar do que era.

 

Durante esta semana, várias vezes, também perguntei aos nossos mortos se podia fechar os olhos. Eles disseram que sim, claro que sim. E pediram para não lhes fazer mais perguntas, disseram que a resposta será sempre sim.

 

José Luís Peixoto, in Abraço, Quetzal.

 

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Tenho pena que estas palavras não sejam capazes de abrandar-te o ressentimento. O lugar onde existem, onde são capazes de chegar, não toca o lugar onde conservas esse ressentimento cristalizado. Estas palavras e o teu ressentimento são como universos paralelos num filme de ficção científica, coexistem no tempo, mas são absolutamente paralelos, estão condenados a nunca se encontrar. Constato esta impossibilidade e tenho pena. Creio que aproveitarias melhor o tempo sem esse chumbo ou, pelo menos, sem algum do seu peso. Tudo isto te parece estrangeiro, não te diz respeito. Não chamas ressentimento a essa força que te faz cerrar os dentes, a esse incómodo, não vês motivos para ver-te livre dele ou, sequer, para abrandá-lo. Habituaste-te a ele, acreditas que faz parte de ti. 

 

Sentes que foi cometida uma injustiça em relação a ti. Essa injustiça pode ter acontecido efetivamente, pode ter sido bastante cruel, mas também pode não ter acontecido. Não é isso que importa, apenas conta sentires que foi cometida uma injustiça em relação a ti. Sentes que a injustiça te inferioriza, talvez não te tenham reconhecido como achas que merecias. Essa dor, ruminada durante anos, formou o ressentimento que conservas. 

 

Agora, o mal-estar é já uma condição física. Passou das emoções para a atitude e, logo depois, passou da atitude para o corpo. Agora, vês o mundo através do ressentimento, é como um filtro, cobre-te o olhar. E, por isso, só já consegues pensar por intermédio dele. Seriam necessários anos de intensa fisioterapia para retirar-te o ressentimento da postura. A nível interno, está diluído em todos os teus fluídos. Ao correr-te no sangue, chega às artérias mais finas, irriga-te todos os órgãos. 

 

Sentes que foi cometida uma injustiça em relação a ti. Acreditas que essa dor te confere direitos. Precisas de infligir essa mesma dor aos outros. Hão de sofrer como sofreste, como sofres ainda. Acreditas que os outros merecem essa dor. Afinal, são eles os privilegiados. A balança que te castigou, favoreceu-os a eles. Os “outros” podem ser um grupo mais ou menos restrito, com características definidas, ou podem ser o mundo inteiro. Em qualquer dos casos, estás convencido de que o cinismo te protegerá. Não voltarás a acreditar em ilusões, enganos tocados pela inevitável injustiça, que apenas têm o propósito de conduzir-te a nova dor. Mas não conseguirão fazer-te sofrer de novo, perdeste essa inocência para sempre. Agora, serão eles a sofrer. E assim te intoxicas nos vapores do veneno que julgas guardar para os outros. 

 

Tenho tanta pena que estas palavras não sejam capazes de abrandar-te o ressentimento. Imagino estas palavras a chegarem à tua compreensão e, ao serem entendidas, a dissolverem essa pedra que carregas no interior. Também as palavras têm uma existência simultaneamente imaterial e material. É por isso que alimento esta fantasia. Imagino estas palavras a desembaraçarem um equívoco que te paralisa. Como aquele leão feroz dos desenhos animados a quem tiram um pico da pata e que fica dócil de um momento para o outro. Sim, já sei que, pela lente do cinismo, “dócil” é um adjetivo para fracos, mas repara como todo o mundo é fraco pela lente do cinismo. É provável que estas palavras te pareçam estrangeiras, que aches que não te dizem respeito. Tenho pena que estas palavras sejam incapazes de dizer-te que não merecias essa injustiça. Ninguém merece essa dor. Ninguém merece esse ressentimento ou seja lá como for que prefiras chamar-lhe. 

 

 

José Luís Peixoto, in jornal Ponto Final (Macau)

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Gorongosa

10.10.18

TEXTO DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO // FOTOGRAFIA DE PATRÍCIA SANTOS PINTO

 

Os animais não esqueceram. Quando percebem que estamos a aproximar-nos, famílias inteiras de macacos fogem diante de nós, trepam aos ramos mais altos; as impalas saltam na distância, traçam arcos perfeitos, é elegante o medo que as leva; até os leões, perante o nosso avanço cauteloso, se mudam para uma sombra mais distante.

 

Às sete da manhã, a terra ainda está fresca. O capim fura uma neblina rasteira que não ultrapassa a base dos troncos. As árvores sabem muito, desenham uma paisagem de riscos que se estende até onde os olhos aguentam ver. No ar limpo e no silêncio, o cheiro fértil da terra e o som de uma enorme multidão de insectos, aves que dispõem deste céu sem fim. O início do dia parece o início do mundo e, no entanto, há rastos que o vento apagou nos caminhos, mas que ainda se sentem.

 

A casa dos leões não é usada há muito tempo. Hoje, só o simbolismo da sua história tem utilidade. O ano de 1940 ficou assinalado a cimento pelos portugueses que a levantaram. Então, destinava-se a receber os visitantes que vinham caçar. Com milhares de hectares à escolha, decidiram construir a pouca distância do rio e, na época das chuvas, o edifício ficou inundado. Dois anos depois, quando os homens o abandonaram, os leões reclamaram-no. Foi a partir daí que, ocupada por leões que subiam pelas escadas até ao terraço ou que permaneciam no seu interior, começaram a chamar-lhe "casa dos leões". Essa época terminou quando as paredes foram atravessadas por rajadas de tiros, quando os degraus das escadas foram destruídos. Durante os anos da guerra civil, os animais selvagens foram dizimados para servir de alimento aos militares. Em 1992, não houve cessar-fogo para os animais da Gorongosa porque, a partir daí, chegaram os caçadores furtivos.

 

Quando passamos pela casa dos leões, são estas memórias que se distinguem naquelas ruínas sujas.

 

Às vezes, quando passamos, há animais que ficam parados a olhar para nós. Fixam-nos com a mesma curiosidade com que os fixamos a eles. Há tanto que queremos dizer-lhes, mas esse instante dura pouco. Distinguem-nos um gesto, visível ou invisível, e estremecem numa corrida que parece sem fim ou direção. Com pena, ficamos a vê-los afastarem-se. Talvez um dia, voltemos a merecer a confiança dos animais.

 

A tarde é tingida por um calor seco. Como uma nuvem de pó, ar espesso e amarelecido pelo sol. O som dos insetos que marcam o horizonte é agora diferente. As raízes dos embondeiros continuam a segurar a terra.

 

Quando seremos capazes de dar valor ao que é realmente importante? É fácil esquecê-la, subestimá-la, mas é sempre a terra que está lá, por baixo de tudo o que fomos capazes de construir, por baixo de todo o alcatrão ou cimento. Quando seremos capazes de ser consequentes com aquilo que é inegável? A terra não depende de nós, a água não depende de nós, a luz não depende de nós; somos nós que dependemos da terra, da água, da luz. Somos nós que dependemos da natureza.

 

O sol vermelho desce atrás das árvores. Os ramos são veias e artérias de encontro a um céu de cores que vão mudando muito devagar. Tudo parece acontecer a essa velocidade. Este silêncio está por baixo de todos os sons com que enchemos o planeta.

 

A Gorongosa é esperança. Envolvendo as comunidades locais, contribuindo para o seu desenvolvimento e restaurando a vida selvagem no parque, o projeto de recuperação da Gorongosa é esperança em Moçambique, mas não só; é esperança em África, mas não só; é esperança no mundo inteiro.

 

A noite chega com todas as estrelas. O céu imenso, polvilhado. Medimos o nosso tamanho a olhar para este céu.

 

A vida é muito maior do que apenas a nossa vida.

 

A terra prepara-se para um novo dia. Os animais sentem-na debaixo das patas, sabem que dependem dela para tudo. Da mesma maneira, sentem a noite. Sabem que têm de sobreviver-lhe, porque os animais não esqueceram. Os leões não querem guerra. Os gnus não querem guerra. Os javalis-africanos não querem guerra. Os pala-pala não querem guerra. Os elefantes não querem guerra. Os animais, todos eles, só querem viver. Os animais não esqueceram.

 

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Ressentimento

14.05.18

As raízes do ressentimento estão fixas na ideia de que não se foi valorizado. Não há palavras ou nitidez nessa crença, não há consciência, há apenas um peso no peito, como se os pulmões tivessem calcificado e custassem a encher, como se o oxigénio tivesse deixado de os saciar.

 

A injustiça original pode ter tido múltiplas formas, reais ou imaginárias, mas o sentimento que gerou foi sempre uma pergunta sem resposta: porque me ignoraram?

 

Essa dor é uma corrente de aço que liga o presente ao passado, o ressentimento é essa dor.

 

Tu és o símbolo de qualquer coisa que o magoou no passado. Ou porque há algo em ti que é comparável a essa mágoa antiga, ou porque há algo nessa mágoa antiga que é comparável a ti, um detalhe pode evocar o mundo inteiro.

 

Não vale a pena perderes tempo a identificar essa coincidência, é irrelevante. As relações não são da responsabilidade dos objetos relacionados, mas sim de quem as estabelece.
A tua presença é alheia ao seu ressentimento. Na verdade, não é de ti que fala quando diz o teu nome.

 

Por um lado, não te conhece; por outro lado, não é capaz de te ver. Quando olha para ti, apenas vê o passado, apenas sente aquela dor antiga, aquela chaga ainda aberta. Como em documentários na televisão ao domingo, é um animal ferido na savana, talvez um leão, é um animal zangado. Os seus argumentos são camuflagem para o mal‑estar.

 

Mas é sempre assim? Sim, é sempre assim. Quando se tenta eliminar o outro, quando não se lhe reconhece direito à existência, quando se tenta assassinar a sua reputação, é sempre assim. Mas não haverá casos em que o rancor é isento? Não, o rancor nunca é isento, é sempre pessoal e tendencioso, depende daquele que o projeta e não daquele a quem se dirige.

 

E sim, o teu cuidado é legítimo, a tua pena e preocupação são legítimas. Mas não podes caminhar com as pernas dos outros, gesticular com os seus braços, não podes falar com a sua voz. Terá de ser o próprio a drenar o veneno. Tu apenas podes viver a tua vida, o que não é pouco.

 

 

 

José Luís Peixoto, in Notícias Magazine (8 de maio de 2018)

 

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Aspas

14.04.18

 

Enquanto que "ler" pode ser uma mera distração, ler é um compromisso. "Ler" prescinde da presença que ler exige. "Ler" é muito parecido com ler mas, ao mesmo tempo, é bastante diferente. "Ler" é quase o oposto de ler.

 

"Ler" pode ser este encontro breve: passar os olhos por estas colunas, sobrevoá-las sem reparar mesmo em cada palavra, assimilar as primeiras linhas, apanhar pedaços aleatórios do meio, colheradas, fragmentos daqui e dali, e alcançar o fim na diagonal, para ver como acaba.

 

Ler é outra coisa. Quem lê já chegou onde queria ir, não tem pressa. Ler, parece-me, acontece com mais facilidade nas páginas de livros. Ler é uma tarefa de horas ou, melhor, de tempo que não pode realmente ser medido. Apesar da progressão nos capítulos, apesar do ponto final, ler é uma atividade sem fim. Suponho que ler seja comparável a navegar num oceano: horizonte em todas as direções.

 

Quem leva ideias preconcebidas e vai em busca das suas próprias justificações não lê, apenas "lê".

 

As palavras não resistem a ser repetidas com desdém. Se uma criança mal disposta as arranca do seu tom e as repete com troça, as palavras sofrem como qualquer vítima de bullying. Da mesma forma, nenhum texto resiste a uma leitura com desdém. Quem lê não impõe uma voz às palavras, prefere escutá-las.

 

Ler requer humildade, generosidade e confiança.

 

Para ler faz falta uma certa paz e, ao mesmo tempo, uma certa inquietação. Esse é um equilíbrio rigoroso, uma forma de respirar que não se ensina e que, no entanto, se pode aprender.

 

Há momentos em que ler é vozes em uníssono, palavras sobrepostas, dentro e fora de nós: verdades que conhecemos de dentro a chegarem de fora e a falarem-nos, recordações vivas de um passado que está a acontecer pela primeira vez naquele momento. Como uma organização súbita, o mundo unificado, um sentido integral, a coerência plena, um génesis. Não existia, passou a existir. Da escuridão absoluta à luz também absoluta. E, no entanto, tudo simples, natural.

 

Quem lê não faz exigências, apenas quer estar ali.

 

 

 

José Luís Peixoto, in Notícias Magazine (6 de abril de 2018)

 

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Os elitistas acham sempre que fazem parte da elite. A pirâmide, no entanto, tem uma imensidão de vértices, é provável até que não se trate realmente de uma pirâmide. Por isso, não faltam perspetivas para que uns e outros se considerem no topo.

 

Há o elitismo social, de classe, relacionado ou não com o elitismo económico; há o elitismo cultural, relacionado ou não com o elitismo académico; há o elitismo moral, relacionado ou não com o elitismo religioso; há uma quantidade inúmera de elitismos, derivações de derivações, ramificações, tipos específicos e especializados, insignificantes para quem está fora, vitais para quem está dentro.

 

Em qualquer dos casos, o elitismo é sempre a defesa da superioridade de uns em relação aos outros, é sempre a afirmação da diferença e da separação. As suas razões são o núcleo daquilo que coloca gente contra gente, que justifica guerras. O elitismo garante que uns são mais capazes do que outros, ou que uns têm mais direito do que outros.

 

Mesmo quando se dedica a áreas extravagantes, a mundos microscópicos, o elitismo é sempre uma atitude política. A elasticidade do seu metabolismo permite-lhe sobrevivência em todas as áreas do espetro político, sem exceções. Consegue adaptar-se a qualquer habitat argumentativo. Com mais regularidade do que seria de supor, há apologias do elitismo que, camufladas ou explícitas, são feitas no próprio instante em que se afirmam contra ele. São a elite dos que se afirmam contra a elite.

 

Os defensores das castas dizem que é assim desde sempre, dizem que essa é a ordem natural, moldam a história e a ciência de acordo com os resultados lógicos que pretendem alcançar. Não é difícil fazê-lo, os argumentos são uma massa mais moldável do que o barro.

 

Depois, para lá disso, muito longe e logo ali, há os seres humanos, que nascem, alimentam expetativas e morrem. Quando seremos capazes de olhar para os outros como olhamos para nós próprios? Quando seremos capazes de olhar para nós próprios como olhamos para os outros?

 

 

José Luís Peixoto, in Notícias Magazine (Fevereiro 2017)

 

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O meu pai segura um doce de ovos moles entre o polegar e o indicador, segura o objecto mais delicado do mundo. Tem a forma de um búzio. Segura-o exatamente pelo vértice, é uma forma branca e elegante. Olha esse pequeno búzio como se o analisasse, não o perde de vista, segue-o ao aproximá-lo da boca e até mordê-lo com a ponta dos dentes: dentadinha. Neste momento, o meu pai é homem, mas também é menino; é forte, mas também é frágil. Não se apercebe da ternura que o envolve.

 

A minha mãe guarda o doce que lhe calhou, é uma pequena concha. Procura um lenço no interior da mala, a minha mãe tem sempre um lenço lavado e passado a ferro. Mais tarde, irá oferecer-me este doce de ovos moles, talvez depois de jantar, talvez um pouco esmagado pelas horas dentro da mala, talvez com alguma penugem do lenço. A minha mãe está a guardar o doce para mim. Ouço frases breves na voz da minha irmã, dá-me instruções acerca de como morder o doce devagar, como saboreá-lo. Ao mesmo tempo, sem palavras, ensina-me também a fechar os olhos para sentir o sabor a avançar pelo interior da boca, a ser um lugar, como um terreno de açúcar que se expande pelo negro que possuímos por dentro, que o ilumina de certo modo, que lhe dá forma e superfície. Eu tenho o direito de ficar com o doce maior. Quero ser adolescente, mas não prescindo dos meus privilégios de criança. Tem a forma de um peixe com escamas ténues, como uma sardinha com cara de pessoa. Seguro-lhe pelo rabo e, antes ou depois de trincá-lo, fixo este momento.

 

Estamos sentados na carrinha estacionada. Diante da ria, um pouco afastados do centro de Aveiro. No lugar do condutor, com o volante diante da barriga, o meu pai; a seu lado, a minha mãe; no banco de trás, a minha irmã e eu. Neste momento, a nossa carrinha é a nossa casa.

 

Escrevo estas palavras escolhidas, estes substantivos, estes adjetivos, declino estes verbos no presente e, ao fazê-lo, é como se estivesse lá, ainda ao lado da minha irmã, na presença do meu pai e da minha mãe. Como são fortes as palavras, carregam todo o peso da memória. Sustentam-na sem aparentar qualquer esforço.

 

Há poucas semanas, estive em Aveiro. Eu era um homem de quarenta e três anos. Eu era um homem sozinho, de quarenta e três anos. Tive algum tempo para passear, não muito. Inclinado sobre as grades de uma ponte, assisti à passagem de barcos cheios de turistas ao longo da ria. Se existissem barcos desses quando estivemos lá, teríamos andado. Agora, essa seria uma lembrança boa.

 

Em silêncio, contemplando a lonjura através do para-brisas, o meu pai dá mais uma dentadinha no doce de ovos moles. Esse búzio tem um interior de amarelo vivo, como se fosse feito de ouro húmido. Este é o poder dos verbos conjugados no presente. A minha irmã também desfruta do seu doce de ovos moles. A minha mãe, sem saber, desfruta da segurança deste instante. Em silêncio, no interior de mim, aqui e lá, digo-lhes: aproveitem este momento, pai, mãe, mana. Estamos juntos neste tempo que nos inunda e nos preenche. O tempo é a vida.

 

José Luís Peixoto, in revista UP (Janeiro, 2018)

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As nossas vozes misturavam-se com o rumor da água a correr, água atravessada por raios bem desenhados de claridade, som muito puro, quase silêncio, que restolhava em todas as pedras polidas ao longo do seu caminho. As sombras mais suaves das árvores eram levadas por essa corrente branda e também elas se misturavam com o tamanho daquelas tardes de verão. Eram tardes que, parecia-nos, jamais encontrariam o seu fim.

 

Tínhamos chegado ali de bicicleta. Primeiro, a pedalarmos pelas ruas pavimentadas da nossa aldeia e, depois, por estradas que só nós conhecíamos, torrões de terra a desfazerem-se sob os pneus. De um lado e de outro, estendiam-se paisagens cobertas por mantos de cigarras que, àquela hora, eram incandescentes, incendiadas pelo sol. Por fim, à beira da ribeira, enquanto despíamos a camisola, era esse calor e essa sede que levávamos na pele.

 

Entrávamos devagar na água, dissolvíamo-nos nela. Assentávamos os pés sobre seixos arredondados por muitos verões, por muitas férias grandes, por camadas de limos, como veludo. Em níveis, passo a passo, saciávamos o corpo: até aos joelhos, até à cintura, até aos ombros e mergulhávamos a cabeça. A água era leve, os nossos braços atravessavam essa matéria fina e translúcida, os nossos movimentos abrandavam apenas o suficiente para serem justos. Se nos deixávamos cair para trás, deitados na água, a flutuarmos como folhas de árvores inclinadas sobre a ribeira, tínhamos o céu inteiro diante de nós: uma cor única e absoluta, uma certeza tranquilizante.

 

Então, tínhamos a idade de nos deslumbrar com as coisas mais singelas. Se a nossa vida fosse um rio, estávamos muito mais perto da nascente, não éramos ainda capazes de imaginar a foz e, talvez por isso, acordávamos em manhãs inundadas por um presente luminoso, tempo de possibilidades infinitas. Sabíamos que tudo podia acontecer e, com pouco esforço, qualquer coisa ínfima, uma pedrinha atirada às águas da ribeira, podia transformar-se em qualquer coisa grandiosa, todos os nossos sonhos realizados. Essa era a força da nossa imaginação.

 

Era assim e, no entanto, hoje, com tudo o que mudou, continua a ser exatamente assim. Chegamos com os nossos filhos, são pouco mais novos do que nós naquele tempo. Olhamos para eles e conseguimos encontrar-lhes muitas diferenças, o cuidado com que pousam os pés descalços sobre a terra e, depois, sobre os seixos que ainda cobrem a entrada da ribeira, mas há um brilho na pele, uma ilusão no olhar que é a mesma. Os nossos filhos, passados todos estes anos, levam no olhar uma ilusão igual à que levávamos, pouco mais velhos do que eles. Talvez essa ilusão, ou esse brilho, seja um reflexo das águas desta ribeira, talvez a luz do verão se reflita assim nestas águas límpidas. Nesse caso, pode ser que também nós ainda levemos esse brilho, ou essa ilusão, no olhar. Talvez o tempo não tenha passado, o ínfimo pode ainda transformar-se em grandioso, os nossos sonhos estão lá ao fundo, vão realizar-se todos antes de terminar esta tarde imensa de verão.

 

José Luís Peixoto, in revista Up (Agosto 2016)

 

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O algodão da roupa engrossou, o sol deixou-o mais rijo. Raspa no sal que ainda trazemos colado à pele e, mesmo assim, não é demasiado áspero. É algodão a ganhar um ruço de estio, deste tempo, próprio destas horas luminosas, incandescentes. Levamos ainda a cor do mar, o vítreo, os pontos de sol no relevo das ondas, levamos a Serra da Arrábida nas costas, todo o seu tamanho, como se possuíssemos uma sombra enorme. Temos grãos de areia presos aos tornozelos, são uma segunda pele, perdemo-la aos poucos.

 

O meu pai estacionou a carrinha junto ao Estádio do Bonfim. Reconheço as suas paredes verdes e brancas de relatos na telefonia do barbeiro.

 

A minha irmã e a minha mãe andam com segredos. Por isso, caminho ao lado do meu pai, à sua velocidade. Ele não se importa com esses sussurros, não sente curiosidade. Sou capaz de imitá-lo. Avançamos solenes pelas ruas de Setúbal, levamos o Portinho da Arrábida na pele, nos olhos, na respiração.

 

O meu pai sabe o caminho. Não me admiro. Conto com as suas certezas em todos os momentos. Cruzamo-nos com pessoas que não vão de chinelos ou de sandálias, não vão de calções, não usam fato de banho por baixo das camisolas, e chegamos ao restaurante.

 

A toalha de papel é lisa na ponta dos dedos e na palma da mão. Os talheres estão certos pelos pratos. Como se lesse uma epopeia, o meu pai lê as longas páginas plastificadas da ementa. A minha irmã e a minha mãe aproveitam para dizer alguma coisa urgente com os olhos. Não as entendo, avalio a qualidade da loiça, viro o prato à minha frente.

 

O restaurante está cheio de vozes misturadas com a televisão: janela de cores demasiado garridas. O empregado desliza entre as mesas, há uma espécie de pânico na sua pressa, parece prever uma catástrofe, a sua pressa é a única forma de evitá-la. No espaço apertado daquela sala, contorna olhares que, às vezes, conseguem agarrá-lo por instantes, contorna vozes e gargalhadas da mesa sete, repete os pratos do dia, repete a lista de sobremesas, enfia a cabeça no buraco da cozinha e grita lá para dentro.

 

Já escolheu? O meu pai pede o que já tínhamos decidido no carro. Saímos da praia com essa ideia. O empregado afasta-se sem precisar de anotar o pedido, não esquece. Deixou um pires de azeitonas e caixinhas de manteiga que, de repente, enchem a mesa. Sem palavras, o meu pai confirma que hoje posso. Parto um pedaço de pão, cheira a pão. Abro a manteiga com a ponta dos dedos, tenho uma faca. Caixinhas de manteiga deste tamanho também são uma brincadeira.

 

Olhamos para as pessoas das outras mesas, identificamos diferenças em relação a nós. A minha mãe e o meu pai conversam. Os segredos terminaram. Eu apenas sou capaz de olhar para a bebida, quero bebê-la, tenho de esperar pela comida.

 

Por fim, o empregado chega triunfante. Com as duas mãos, pousa a terrina no centro da mesa, liberta uma nuvem de vapor. Antes de se retirar, avalia a nossa felicidade.

 

A minha mãe começa a servir caldeirada de peixe em cada um dos nossos pratos. Hei de lembrar-me deste cheiro por muitos anos, hei de tentar recriar este momento muitas vezes. Mas isso será depois, falta muito para chegar esse tempo. Agora, vou comer.

 

José Luís Peixoto, in revista Up (Julho 2017)

 

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Presença

12.07.17

 

 

Apenas sei que regressei a casa quando te pego ao colo. Tens muito para dizer-me e, por isso, os nossos olhos não se separam. Podia ficar aqui para sempre, há um mundo completo no interior dos teus olhos. Avanço nele e só encontro pureza. Comparo essa paisagem com os lugares por onde andei e, por momentos, acredito que nunca mais quero sair daqui. Aspiro ao que vejo nos teus olhos, quero essa candura transparente para os meus gestos e para as minhas intenções. Aprendo tanto contigo.

 

Respiramos ao mesmo tempo. Agora, por fim, estamos juntos no mesmo instante, habitamo-lo. Passo as mãos pela tua cabeça, pescoço, costas, as minhas mãos são enormes no tamanho do teu corpo. Quando te habituas a esse ritmo e a esse calor, bocejas longamente. És tu, é a ternura, sorrio.

 

Sinto o conforto do teu peso. Nele, há uma segurança profunda, absoluta.

 

Nunca perguntas porque vou embora, sou eu que coloco a questão a mim próprio. Entre mistérios privados, secretos, há um lugar onde permanece essa interrogação sem resposta, exala uma espécie de força magnética, invisível e, no entanto, capaz de exercer força, mover objetos. Tento fixá-la como faço com os teus olhos, mas parece-me que lhe falta a tua clareza, que me falta a tua sinceridade.

 

Às vezes, sem saber o que quero, tenho a certeza de como posso alcançá-lo. Então, os movimentos são mais rápidos do que o pensamento, há uma vontade maior do que a minha a dirigir a minha vontade. Há uma voz distante que me chama, fico cego.

 

Agora, abraço-te. Em ti, protejo-me do mundo e de mim próprio. Esperaste-me atrás da porta, não deixaste que este tempo perturbasse o nosso apego. Levei-te comigo em todos os momentos, foste ao lado do meu nome, do meu silêncio, do pouco que realmente possuo.

 

Estás ao meu colo, respiras e, ao mesmo tempo, sou eu que estou ao teu colo, respiro. Há um entendimento que nunca perderemos, é maior do que as nossas vidas, é maior do que aquilo que somos capazes de ser. Eu sou um homem de 42 anos, tu és uma cadelinha de 11 anos, mas não é isso que importa.

 

 

 

José Luís Peixoto, in Notícias Magazine (julho 2017)

 

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